[13.] As vozes gravadas
Chamo-me ana maria e recebo uma pensão dos riscos profissionais porque deixei de poder exercer a minha actividade na sequência de um problema de saúde grave relacionado com o manuseamento de substâncias tóxicas. O mundo mudou muito nos últimos anos. Muda sempre. E o meu país mudou com as mudanças do mundo. Não sei se o futuro nos permitirá manter apoios sociais que resultam de lutas antigas e conquistas que nos fazem melhores enquanto pessoas e enquanto sociedade. Porque vivemos tempos difíceis e porque o mais certo é que dificuldades futuras se acrescentem às atuais dificuldades. Por isso não sei até quando poderemos garantir este tipo de dádivas que coletivamente assumimos como desígnios. Porque os tempos mudaram e talvez tenhamos que repensar tudo. Mesmo o que conquistámos e não deveríamos perder. Seja como for: há territórios onde recuar significa diminuirmo-nos em dignidade e humanidade. Porque há universos além da economia. E a minha ferida não é tanto a de sentir o peso das dificuldades financeiras e a de pressentir o seu inevitável acréscimo. Não é tanto a perspetiva de que o futuro possa impedir a continuação dos apoios que me são atualmente prestados. A minha ferida é a de sentir que o relacionamento pessoal é substituído por máquinas e pela abstração distanciada da ausência de rostos. Sobretudo nestes domínios em que a fragilidade e a desproteção se constituem como elementos de partida. Deu-se o caso de ter recebido uma carta da segurança social a pedir que comunicasse a eventual alteração do meu número de identificação bancária. Compreende-se que tenha ficado de pé atrás quando pela primeira vez em quinze anos a pensão não me chegou na data costumeira. Uns dias correram e decidi ligar para os riscos profissionais. Explicaram-me que agora a coisa era com a segurança social. Liguei então para os serviços regionais da segurança social a tirar inculcas. Explicaram-me que os esclarecimentos não eram com eles mas com uma linha telefónica prioritária que começava por 808. Liguei umas dez vezes e respondia-me sempre uma voz gravada repetindo que de momento não era possível atender etc. e que para um atendimento mais rápido tentasse das 8 às 10 e das 17 às 20 horas. No dia seguinte liguei várias vezes das 8 às 10 e das 17 às 20. Sempre sem sucesso. E então contatei de novo os serviços regionais da segurança social a explicar que só havia gravações. Responderam-me a lamentar mas que o atendimento só era possível através da linha prioritária. Liguei de novo. Sem sucesso. Até que a linha prioritária me devolveu enfim uma voz em direto em vez da gravação. Expliquei o caso. Pediram-me que soletrasse os meus dados. E depois a voz disse-me «é só um momento» e ouvi cinco minutos de música de elevador. E então a voz regressou a informar que não tinham informação de processo mas que iam esclarecer o assunto e depois me ligavam. Não telefonaram ainda. Estou a contar esta história no dia em que resolvi de novo tentar a linha prioritária e em que ouvi de novo uma voz gravada a dizer que de momento etc. A questão não é a do atraso no pagamento. A questão é a de sentir uma ferida que vem de não poder discutir esta baralhada com ninguém que tenha um rosto e atenderem-me sucessivas vozes gravadas como se eu fosse um objecto autómato.