JOSÉ CARLOS BARROS

[3.] As coisas desligadas

OLHAMOS quase sempre o passado remoto como coisa separada de nós. E no entanto nada nos é dado ser senão em continuidades e contiguidades, progredindo num fio tenso que por um lado nos amarra ao passado e por outro lado nos aponta e nos permite os caminhos do futuro. Na sua «História Concisa de Portugal», abreviada como logo do título se vê, entendeu José Hermano Saraiva, ao invés de começar pelos antecedentes da conferência de Zamora, recuar aos calhaus rolados que há quatrocentos mil anos, neste mesmo território, uns homens aguçaram num dos topos para os transformar em armas de defesa ou instrumentos de trabalho.

QUANDO tanto discutimos a crise e tão apressadamente identificamos as suas causas com razões exclusivamente de ordem económica – um processo recente de desregulação dos mercados financeiros –, talvez pudéssemos buscar de novo o poema de Sophia e lê-lo vagarosamente: «A civilização em que estamos é tão errada que/ Nela o pensamento se desligou da mão// Ulisses rei de Ítaca carpinteirou seu barco/ E gabava-se também de saber conduzir/ Num campo a direito o sulco do arado».

POUCOS anos, tão poucos, nos separam de um tempo em que, no nosso país, era predominante o peso do sector primário. Do mesmo modo que actualmente não está em causa a importância de que todas as crianças disponham gratuitamente de um computador e internet para os seus projectos educativos, os seus jogos virtuais e as suas redes sociais – se paralelamente não se subvalorizar a importância de saber fazer contas e resolver equações de primeiro grau, ler um texto e compreendê-lo ou alinhar um parágrafo em redacção escorreita –, não pode por um único instante pôr-se em causa a necessidade que existia de modernizar e, aos poucos, reduzir o excessivo peso de um sector primário envelhecido e sem competitividade. Mas nós fizemos uma coisa elogiada: evoluímos do primário ao terciário sem passar pelo sector secundário; apagámos as imagens do passado; eliminámos a ruralidade sem transições – e a agricultura e as pescas a que a associávamos; moderni-zámo-nos, portanto; e remetemos ao subsidiozinho e aos encargos da segurança social esses homens e essas mulheres inesperadamente sem préstimo, esse estorvo à mo-dernidade, ao sucesso e ao concomitante recurso ao crédito.

SE é certo que deixámos o pensamento desligar-se da mão e que desvalorizámos socialmente os ofícios de car-pinteirar um barco ou de conduzir num campo o sulco do arado e que vendemos as hortas para comprarmos apartamentos a crédito – a verdade é que não perdemos tudo; e dêem-se como exemplo os frutos e os legumes de milagre, frescos, com o sabor antigo, que podemos ainda comprar na Loja da Gracinha: legumes e frutos de produtores locais que a modernidade e o sucesso não conseguiram varrer.

TALVEZ esses legumes e esses frutos não sejam mais que um símbolo. Mas que nos permitam, por entre a amnésia e a voragem da desmaterialização de tudo e da redução de tudo a gráficos com spreads e taxas de juro, ver neles a importância simbólica dos espaços de resistência.

Nota: O autor não escreveu o artigo ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.

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