JOSE CARLOS BARROS

Ficções [7.] Dos sinais de esperança

TALVEZ UMA METÁFORA do nosso tempo possa dar-se pela imagem da bússola de súbito destrambelhada por intromissão de um imprevisto campo magnético de origem desconhecida. Porque perdemos as marcações; porque as transformações socioeconómicas têm vindo a ocorrer no sentido da crescente perda de controlo dos indivíduos e das organizações sobre a sua esfera própria. Perdemos o pé. Dias da Cunha, o sage presidente do Sporting que olhava as coisas um bocadinho acima da cota de soleira (o que alguns confundiam com as nuvens), e que portanto muitos ouviam fazendo chistes burgessos, falava do «sistema» para explicar os males e a perversidade do mundo da bola. Ríamos. Agora, passados uns anos, os analistas encartados e os comentadores hábeis, à hora de abertura dos telejornais, explicam-nos a crise desse modo idêntico: coisas do «sistema» financeiro – tão abstratas para nós como as expressões da teoria dos fratais para um estudante do segundo ciclo. Não há culpados; não há rostos; não há impressões digitais. E é isso, pois, o que sobretudo caracteriza o nosso tempo: a ideia de que deixámos de ter mão nas coisas que supostamente nos eram próximas; a ideia de que tudo passou a depender de forças, tensões, movimentos, que nos são exteriores. Tudo, hoje, é volátil. A globalização é essencialmente uma imensa bolha volátil. E é essa volatilidade que aos poucos nos traz o crescente sentimento de perda e desorientação.

SABEMOS que a entreajuda, a reciprocidade, a tornajeira, a solidariedade, os exemplos de comunitarismo que caracterizavam o mundo rural – não vinham tanto de uma suposta (mítica, mitificada) superioridade moral, ou ética, dos rurais sobre os urbanos, mas (oh o quanto custa o ruir das ilusões) de uma necessidade operativa, de uma defesa contra a adversidade. O processo de transformação das sociedades rurais a que assistimos nas últimas décadas, no entanto, levou ambas as coisas na mesma enxurrada: a necessidade e a solidariedade que decorria dela. E, um dia, não mais que de repente, vemos com surpresa que a «necessidade» regressa no refluxo da antiga corrente, mas que a «solidariedade» ficou perdida algures no individualismo e na abstração (no «sistema?») de um tempo novo em que a atenção «ao outro» deixou de fazer sentido por nos termos esquecido de que, em boa verdade, olhando melhor, os «outros» somos «nós».

NUM TEMPO DE CRISE como este em que nos afundámos – e que é em grande parte [mas isso é apenas o resultado, não a causa] uma crise económica e financeira – têm vindo recentemente a repetir-se, a multiplicar-se, as iniciativas e as ações de solidariedade e voluntariado. O voluntariado – essa atenção ao «outro», essa disponibilidade de aceitarmos receber essencialmente no que formos capazes de dar – afirmou-se, ganhou visibilidade, contagiou indivíduos e grupos. Talvez, em muitos casos, não seja na sua matriz um sentimento puro o que move às ações, mas apenas o entendimento (ou o pressentimento) de que «nós», mudando os espelhos de lugar, somos também os «outros». Seja como for: são sinais de esperança e de regresso a algo de essencial que julgávamos ter perdido em descuido e volatilidade. E isso nos faz acreditar que é sempre exequível (se quisermos) regressar a uma manhã de claridade limpa, a um azul que permanece nos versos de Sophia e nos é possível roubar (para nosso proveito prático) às páginas dos livros.

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