JOSÉ CARLOS BARROS

[8.] A recriação de universos

 

ESCREVO sem me levantar da cadeira e recolher o livro que tenho ali a dois passos. Prefiro, das repetidas leituras, guardar as memórias desse texto fundador. «O Dia dos Prodígios» conta uma história – uma história a muitas vozes e com escaleiras de labirinto a unir andaimes sucessivos, como numa convocação em que apenas é indicado o espaço da representação e se definem marcações genéricas e se pede aos personagens que avancem e, enfim, dêem início ao ritual (também de catarse) que se desenvolve sem páginas de guião e com o autor, afastando-se, a transformar-se (a ir-se transformando) em espectador da demonstração. Porque, é certo, há uma história para contar. Mas o que é essencial neste jogo de espelhos, mais que a história, é o modo como a história é contada. É pela linguagem que a narrativa, que o canto, que a polifonia se decide: mais do que para contar, para construir um fio de meada, a linguagem serve para delimitar uma fronteira (erguê-la e depois fazê-la implodir), enraizar um território, reinventar um mundo em que um «alguidar» e um «alguidarzinho» são duas coisas diferentes. Por isso este livro de Lídia Jorge, fundador, inaugural, é feito sobretudo de sobressalto e revelação:

a) o sobressalto que decorre de inconciliáveis desentendimentos e da interpelação deles: os habitantes de Vilamaninhos que não compreendem os que vêm de fora; os que vêm de fora e não compreendem os habitantes de Vilamaninhos; e os habitantes de Vilamaninhos que se confrontam com os seus próprios desentendimentos e com o desacerto de um mundo de súbito tocado pela interrogação;

 b) a revelação que decorre da recuperação, por parte dos diferentes personagens desse mundo afastado do mundo, da sua alma própria e da (consciente, inconsciente?) descoberta de si em si mesmos: não pela recusa ou pela aceitação das bandeiras desfraldadas que os soldados trazem e é suposto erguerem todos; mas pela busca (por um processo de busca, de procura) do que em cada um de nós é humanidade e nos está tão próximo que somos levados a esquecer (ou a nunca chegar a descobrir) e a procurar longe ou nos outros. A revelação, portanto, de que somos nós que começamos por desenhar o destino que é o nosso e se ergue necessariamente afora dos milagres, da providência e do ruído imenso do mundo.

ESCREVEU TORGA, em Traço de União, que «o universal é o local sem paredes». Aqui, em «O Dia dos Prodígios», a universalidade é-nos devolvida pelas ínfimas e verdadeiras e específicas partes que a constituem: nos termos, na geografia, nas expressões ou entendimentos, nos usos, nos nomes das coisas. Todos conhecemos Vilamaninhos: a linguagem devolve-nos um espaço bem delimitado (local) vinculado a um chão específico em que personagens [nossas] conhecidas se movem. Conhecemos Carminha Rosa, Manuel Gertrudes, Macário, Esperança Teresa, Branca, José Jorge Júnior. E, no entanto, cada um deles – Carminha Rosa, Manuel Gertrudes, Macário, Esperança Teresa, Branca, José Jorge Júnior – é, além dele mesmo, um outro simbólico que pertence a todos os lugares do mundo.

A LITERATURA é, sobretudo, linguagem. Um jovem, há muitos anos, leu «O Dia dos Prodígios» como se lhe fosse dado compreender [descobrir] que através da ficção – da linguagem reveladora – é possível, em permanência, a recriação de universos.
Nota: O autor não escreveu o artigo ao abrigo do novo Acordo Ortográfico

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