JOSÉ CARLOS BARROS

[9.] Crónica desusada

 

1. ÓRFÃO MUITO CEDO, sem amigos nem familiares que o visitem ou ajudem, sozinho num casebre fora da Vila, sem eletricidade nem água canalizada, sobrevivendo sem terras próprias da rusticidade do rebanho de cabras que pastam onde houver que roer em terreno baldio ou deixado à proliferação dos matos. Eis o enquadramento perfeito para uma crónica de Natal já desusada, a puxar à lágrima, ao Fado pátrio, ao estereótipo da quadra. E no entanto é uma história verdadeira – só riscarei os nomes próprios.

O meu amigo, por razões de trabalho, conheceu o pastor na sua casa térrea, de camadas de cal sobrepostas a deixar nas empenas esse branco iluminado por dentro simultâneo à sombra dos minúsculos relevos da passagem do tempo, de pequena horta cercada por uma sebe de pitas e um poço com balde e roldanas de ferro, de poial onde ficaram nessa primeira tarde de junho a fumar um cigarro e a acertar pormenores da baixada elétrica. Uma estranha afinidade os ligou – ao pastor iletrado e afastado do mundo e ao meu amigo com licenciatura, apartamento na cidade de Faro, muita leitura de ensaios e romances, muito cinema europeu. Resolveu-se a iluminação elétrica – e em novembro lá estavam, de novo, agora a festejar, com o meu amigo a levar uma garrafa de vinho, pão em forno de lenha e um queijo de Serpa que era quase um segredo seu para os momentos especiais.

Surpreendeu-me e fascinou-me sempre esta afinidade feita de diferenças e de distanciamentos e da procura simultânea de ligação dos fios que é suposto separarem.

2. CONTOU-ME como se pedisse desculpa pela revelação de uma intimidade que a cultura (alguns preferem o termo pré-conceito) nos impede às vezes de partilhar. Era o dia vinte e quatro de dezembro e o meu amigo resolveu, ao fim da tarde, já escuro de ser o inverno, fazer-lhe uma surpresa. Levou-lhe uma garrafa de espumante (com o cuidado de que chegasse ainda gelada) e bolo inglês. Bateu à porta. O pastor veio abrir, abraçou-o, convidou-o a entrar, desligou e voltou a ligar o interruptor, num sorriso, numa demonstração, criança a trazer a sombra, e de novo a luz, a rir como quem agradece ou partilha uma dádiva. Pediu-lhe, enfim, que se sentasse. O meu amigo ficou interdito, sem saber muito bem o que fazer dos sacos que levava: a mesa não estava vazia, como supunha: havia empanadilhas e filhoses, um bolo-rei, bacalhau e batatas ao lume, vinho caseiro numa garrafa de plástico de litro e meio, uma pequena árvore de Natal na cozinha minúscula com lâmpadas de luzinhas intermitentes. Era como se o pastor esperasse alguém. Como se soubesse que haveria, numa noite de Natal, necessariamente, um milagre a cumprir.

O pastor pediu-lhe que ficasse. E o meu amigo ficou; foi ficando. Partilharam o vinho, o bacalhau e as batatas, duas empanadilhas. E teve imensas dificuldades em explicar à mulher e às filhas, às onze e meia da noite, não obstante as mensagens e as chamadas várias de telemóvel, a razão de ter chegado tão tarde e sem apetite ao jantar de consoada, a Faro, ao apartamento de quatro assoalhadas e às prendas trocadas entre risos e uma felicidade que o meu amigo partilhava entre contraditórias emoções.

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