Julian Assange. Suécia em contrarrelógio

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O fundador da WikiLeaks, Julian Assange

Imagine-se o seguinte cenário: um cidadão australiano, preso há mais de dois anos na embaixada equatoriana em Londres, vai ser interrogado pela justiça sueca nesse pequeno território do Equador, para se averiguar se há indícios suficientes para o acusar da prática de crimes sexuais alegadamente cometidos na Suécia. A história, que mais parece uma salada de frutas da política e direito internacional, já é conhecida. É o caso de Julian Assange, jornalista e fundador do Wikileaks, de 43 anos, que já fez correr muita tinta nos jornais nacionais e internacionais – primeiro, pela revelação de documentos confidenciais de vários Estados (entre eles ficheiros que relatavam violações graves dos direitos humanos, pelos EUA, nas guerras do Iraque e do Afeganistão), depois por este caso de possível associação a crimes sexuais.

No âmbito de um processo que se arrasta há mais de quatro anos – dos quais mais de dois foram vividos como ‘recluso’ na embaixada equatoriana em Londres -, a justiça sueca decidiu, finalmente, entrevistar o australiano nessa embaixada, onde se encontra asilado. Um pedido que, de acordo com Per Samuelson, um dos seus advogados de defesa, Assange já fazia há muito. “Isto era algo que já pedíamos há quatro anos”, garantiu esta sexta-feira o advogado à Associated Press, acrescentando que esta “é uma grande vitória” para o jornalista. “Julian Assange quer ser interrogado para que possa ser ilibado”.

Durante vários anos, a justiça sueca recusou-se a entrevistar Assange por Skype ou na embaixada equatoriana, como o próprio pedia, querendo extraditá-lo para a Suécia. Quatro anos depois, acabou por ceder. Sem deixar, no entanto, de afirmar a sua posição.

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“A minha opinião sempre foi que interrogá-lo na embaixada equatoriana em Londres iria diminuir a qualidade da investigação”, afirmou sexta-feira em comunicado a procuradora sueca, Marianne Ny. “Mas agora que o tempo escasseia, considero necessário aceitar essas deficiências na investigação”.

Do WikiLeaks às alegações de crime sexual

O ‘caso Assange’ parece inédito no quadro da cooperação internacional, mas não o é. É o que garantem ao Expresso os especialistas em relações internacionais e direitos humanos, Miguel Monjardino e Pedro Bacelar Vasconcelos, respetivamente. “Há imensos exemplos nas últimas décadas de situações deste tipo, casos judiciais ou com contornos mais políticos, de pessoas que se refugiam em embaixadas durante vários anos”, explica Miguel Monjardino. “Parece-me que esta é apenas a continuação de uma longa tradição da política internacional”.

A questão mais bizarra é, talvez, outra. Pedro Bacelar Vasconcelos explica-a: “A notoriedade pública de Assange nada tem a ver com questões deste foro [criminalidade sexual]. Ele é alguém que deve a sua notoriedade à divulgação de documentos que visaram determinados Estados”, refere o especialista, referindo-se a este caso como “complexo e um tanto absurdo” que, sendo verdade ou não, “se presta muito bem a uma campanha difamatória”. E é disto que Assange parece ter medo: de, ao ser extraditado para a Suécia para ser interrogado (e acusado, ou não, por crimes sexuais), acabar por ser extraditado para os Estados Unidos, onde poderia ser julgado por delito de espionagem, no âmbito dos documentos relevados pelo WikiLeaks.

Mas vamos por partes. Quando, em 2010, o WikiLeaks divulgou vários documentos secretos dos EUA, relatando graves violações aos direitos humanos, Assange era apenas mais um jornalista. Nesse ano, quando estava de passagem pela Suécia para uma conferência, foi acusado por duas mulheres da prática de violação e agressão sexual nesse país. Assange declarar-se-ia inocente, tese que seria reforçada pela descoberta que uma das vítimas teria trabalhado para ONG’s financiadas pela CIA. As investigações seriam, assim, abandonadas e Assange não seria formalmente acusado.

Um mês depois, quando estava em Londres, as investigações seriam retomadas. A Interpol emitiria um mandato de captura e a Suécia pediria ao Reino Unido a sua extradição, o qual apenas seria concedida em 2012. Receando que estando na Suécia, para ser inquirido sobre o caso, fosse extraditado para os EUA, Assange pediu asilo à embaixada do Equador em Londres, onde se encontra desde então.

“Sob o ponto de vista jurídico, Julian Assange encontra-se em território equatoriano”, afirma Pedro Bacelar Vasconcelos. E a diplomacia internacional é explícita nesse sentido, explica: sendo território do Equador, as autoridades britânicas não podem invadi-lo. Prolonga-se assim o braço-de-ferro a três: entre o jornalista, por um lado, e as autoridades britânicas, que cercam o edifício, e a justiça sueca, por outro. Mas os suecos parecem ter cedido ligeiramente.

Suécia em contrarrelógio

“O que me parece que está a acontecer é, do ponto de vista da justiça sueca, a melhor solução”, afirma ao Expresso Miguel Monjardino. “A Suécia quer perceber se há ou não fundamento para uma acusação” e começa a deparar-se com “uma situação de prescrição dos alegados crimes” – ou seja, o prazo para formalmente acusar Assange pelos crimes sexuais termina em agosto de este ano, exceto o de violação que só prescreve em 2020. Vendo-se entre a espada e a parede, os suecos tomaram uma decisão.

O prolongar de uma situação como esta deve-se a um conjunto de fatores, entre eles a incapacidade da justiça sueca na procura de uma alternativa à extradição de Assange. “Para nosso conforto, isto é uma demonstração de que a morosidade judicial não é exclusivamente portuguesa”, ironiza Bacelar Vasconcelos. “Mas não nos podemos esquecer que este é um processo complexo, também pelo número de entidades envolvidas: o Reino Unido e a Suécia (países da União Europeia) e o Equador, fora da União mas localizado em Londres. A morosidade da investigação é também ditada por esta multiplicidade de diligências e níveis – cooperação diplomática e de relações entre Estados, cooperação judicial, cooperação policial, entre outros”.

“Seria positivo que este processo judicial, por ser um processo complexo, chegasse ao fim, não se eternizasse”, afirma o especialista em Direitos Humanos, acrescentando que este “é mais um passo a adiar um desfecho para uma situação de alguém que não foi formalmente condenado à luz do direito internacional. É uma situação de sequestro – passo a metáfora. Mas se Assange aceita ser interrogado é porque acredita que isso poderá resolver a situação”.

Será que este interrogatório irá, finalmente, por um ponto final ao “exílio” de Julian Assange? É preciso esperar para ver. Se as autoridades suecas acabarem por não o acusar, o futuro será mais risonho para o jornalista australiano. Caso contrário, Assange fica nas mãos do Equador. O seu asilo na embaixada poderá prolongar-se indefinidamente, ou o Equador poderá alterar a sua posição. “Caso seja formalmente acusado por crimes sexuais, o Equador terá que fazer a avaliação política dos benefícios ou desvantagens de ter um acusado de crimes sexuais na sua embaixada”, explica Miguel Monjardino. “Mas note-se que na fase inicial deste processo, em que já existiam suspeitas, esse ponto foi menos valorizado do que o ponto ligado ao WikiLeaks”, acrescenta, realçando que a América Latina tem uma grande tradição de antiamericanismo. “Não deixa de ser irónico que alguns dos países que mais defendem Julian Assange sejam alguns dos que menos primam pela liberdade de expressão”.

RE

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