Lota de VRSA vende 60% dos crustáceos do País

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A lota de Vila Real de Santo António é a quarta do País em volume de transações, mas a primeira do Algarve. O epíteto deve-se ao facto de se tratar, de longe, da maior lota nacional de venda de crustáceos em estado selvagem: 60,7% de todo o marisco daquela natureza (isto é, não contando com os bivalves) vendido em Portugal tem aquela lota como ponto de venda. E esse marisco vale 82,6% do que representa, em dinheiro, todo o marisco vendido nas 22 lotas nacionais. A esmagadora maioria dos compradores são espanhóis. Muitos deles voltam depois, para vender… em território português

São 4h30 da manhã, é segunda-feira. Os cerca de 60 homens que esbracejam e falam alto no varandim que dá para o tapete rolante onde passam os tabuleiros de marisco dispensam as cadeiras que lhes ficam atrás, que se quedam vazias. Querem ver de perto. Dizem-nos que, de entre eles, não haverá mais do que uma dezena de portugueses: a esmagadora maioria dos que ali – mesmo guarnecidos de máscara – incumprem as normas do distanciamento social são espanhóis. Vêm das terras cuja silhueta dali já se divisa, graças à Lua e a um precoce assomo de luz solar, que nasce do outro lado do rio que logo ali começa, a poucos metros dos escancarados portões traseiros do edifício. Estamos na lota de Vila Real de Santo António.


Os homens que se debruçam sobre o tapete rolante que faz desfilar lagostins e gambas naquele-lugar-sem-mulheres são todos compradores de crustáceos selvagens, a maioria armazenistas e distribuidores. Na mão de cada um deles há um telecomando com um botão, que será pressionado quando o preço, que decresce vertiginosamente nos vários ecrãs dos televisores em frente, atingir o valor calculado. Naquele lugar há um leilão.

Dezenas de compradores, licitam o marisco, que vai passando nos tapetes rolantes


Cerca de 90% do pescado que ali aporta é marisco, que chega de vários portos do País (Algarve, Sines, Cascais, Peniche) por via rodoviária: a maior parte gamba selvagem, depois lagostim e por último camarão. Os restantes 10% é peixe que chega por via marítima e vem dali ao lado, Monte Gordo e foz do Guadiana.


Mas é nos crustáceos selvagens que a lota de Vila Real de Santo António dá cartas e se distingue de todas as restantes lotas nacionais: por ali passaram, em 2019, um total de 60,7% dos crustáceos vendidos em todas as lotas nacionais e, de todo o valor das transações desse tipo de marisco a nível nacional, 82,6% pertenceram a esta lota. O marisco de VRSA é o mais valorizado do País.

VRSA é a quarta lota do País em transações


Com um total de pescado transacionado de 1.312 toneladas em 2019, que renderam 14 milhões de euros, a lota de Vila Real de Santo António representou naquele ano 6,4% do peso do pescado vendido nas sete lotas do Algarve (1,2% das lotas a nível nacional), posicionando-se numa modesta posição 4. Contudo, quanto ao valor monetário das transações, a lota mais sotaventina do Algarve alcandora-se no primeiro lugar regional: VRSA valeu 26,4% do valor monetário de todas as lotas da região, também no ano passado. No conjunto das 22 lotas nacionais, ela vale uns ainda consideráveis 6,6% do volume total de negócios, em dinheiro. É a 4.ª lota do País em volume de negócios, a seguir a Peniche, Sesimbra e Matosinhos.


“Os crustáceos são o ouro do mar”, comparava há dias uma responsável da Docapeca em conversa com o JA, na tentativa metafórica de explicar a distância entre as importâncias relativas do peso do pescado e do seu valor monetário quanto ao conjunto das lotas, que faz da lota vilarealense a primeira do Algarve em volume de transações comerciais.


Para se aquilatar desse ganho de valor do pescado naquele espaço, basta dizer que ali a gamba fresca de maior tamanho pode chegar aos 50 ou 60 euros por quilo, valor de lota. A mais pequena e a intermédia começam em cerca de 15 a 18 euros e vão até 30 ou 40. Se tivermos em conta que o IVA sobre estes produtos é de 23%, que a lota cobra sobre as vendas um custo operacional de 7% e, por último, que as margens de lucro do comprador e restante cadeia intermediária podem completar 40 a 50% antes de chegar ao consumidor final, aqueles valores em lota podem muito facilmente mais do que duplicar antes de chegarem ao prato do consumidor final, conforme explicou à reportagem do JA o responsável máximo da lota vilarealense, Nuno Lopes.

São transaccionados cerca de uma dezena de toneladas por dia

Crustáceos portugueses melhores do que os espanhóis

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Nos três dias semanais de operação (segundas, quartas e sextas-feiras), o espanhol é a “língua oficial” da lota. Apesar da atração concorrencial de algumas lotas espanholas nas cercanias, as mais próximas das quais Isla Cristina e Ayamonte, os comerciantes andaluzes fazem de Vila Real um porto habitual de compra de pescado, que depois vendem para toda a Espanha.

Os portugueses não lhes fazem sombra: os principais comerciantes da lota algarvia têm nacionalidade espanhola, disse ao JA fonte da Docapesca.


“Os espanhóis têm as lotas de Isla Cristina e Ayamonte, mas pelo tratamento dado ao marisco a qualidade é inferior”, afirma Nuno Lopes, que explica ser também a temperatura da água dos pesqueiros um fator importante na qualidade do marisco português. Portanto, quanto mais para Norte se faz a captura, melhor é a qualidade do crustáceo. Esse é um fator decisivo na comparação entre o marisco da costa atlântica ocidental portuguesa – a maioria do qual acaba na lota de VRSA – e o que é capturado no sul de Espanha: “Para Norte é melhor, as águas são mais frias. Sesimbra e Peniche, por exemplo, têm geralmente melhor marisco”, precisa o responsável da lota de Vila Real. Melhor, mas em menor qualidade, ressalvam outras fontes à reportagem do JA: as águas menos quentes não são tão proliferas como as mais meridionais. Valem menos, mas dão mais.


“Muitas vezes, os espanhóis compram em Vila Real de Santo António e depois vêm vender a Portugal”, revelou ao JA a responsável máxima da Docapesca no Algarve, Alcina de Sousa, secundada por vários operadores da lota algarvia. Todos atribuem o facto à eventual maior capacidade logística e executiva dos armazenistas e distribuidores espanhóis.


Mas no que respeita à venda em território espanhol, os intermediários hispânicos têm uma vantagem competitiva: o IVA sobre o marisco é de 10% em Espanha (o mesmo que para o peixe), enquanto em Portugal o imposto exigido aos compradores para venda em território nacional é o IVA máximo, de 23%.

De Vila Real de Santo António para toda a Espanha


“Venho aqui há cerca de 25 anos. Exporto e mando o marisco para qualquer ponto de Espanha, aos meus clientes” explica Manuel Reys, 56 anos, comprador da Isla Cristina que vende para “onde estiver um cliente”, de Vigo a Madrid, de Málaga a Barcelona, conforme afirma ao JA.


“Cada vez que aqui venho, compro 200 a 300 quilos. O mais vendido depende do que há: umas vezes mais gamba, outras mais lagostim. O bom lagostim tem muita procura em Espanha”. E, ao contrário de outros que antes ouvíramos, jura que a diferença entre o pescado espanhol e português não está na qualidade, mas no tamanho. Geralmente, o português é maior. E quanto maior, mais apetecido é pelos clientes de toda a Espanha.

Manuel Reys, comerciante espanhol


“Há lota em Ayamonte, a Isla Cristina tem um porto pesqueiro muito importante. Mas aqui entra marisco em mais quantidade. Os preços variam muito. Umas vezes é mais barato aqui, outras vezes é lá. Há barcos que vendem na Isla Cristina e vendem aqui também”, afirma. “Também vamos às lotas espanholas, mas às vezes convém mais vir aqui devido ao horário, que é distinto das lotas espanholas. Em Isla Cristina e Ayamonte o horário é à tarde, aqui é de madrugada”, distingue, calculando em 600 quilos o peso do produto que compra semanalmente ao longo das três vezes que vem à lota algarvia.


No outro extremo do espectro dos compradores, o grossista e retalhista Marco Guerreiro, 36 anos, representa a minoria portuguesa dos que vêm comprar a Vila Real de Santo António: “Comecei este ano aqui em VRSA. O marisco que compro vai para a restauração aqui no Algarve, e algum para Lisboa. Já tinha o negócio, mas comecei agora a juntar o marisco à venda de peixe”, explica à reportagem do JA.

Espanhóis é que valorizam o negócio


“Cada vez que cá venho, compro uns 100 quilos. É mais à base de camarão, mas hoje acabo por levar gamba, não há camarão.

Comprei a gamba intermédia, tamanho 3, por 17 ou 18 euros o quilo”, explica Marco, que vende boa parte do pescado para clientes de restauração e hotelaria em Albufeira.


O jovem comerciante não se exime de contabilizar as vantagens de ser espanhol neste negócio: “Os espanhóis têm mais poder de compra e para além disso o IVA que a gente paga é 23% e lá é 10%. O marisco que nós compramos leva mais 30% em cima, que são 7% da lota e 23% de IVA. Um quilo de 20 euros a mim ficam em 26, mas a um espanhol fica em 23,40 euros. Eles vêm aqui, não há problema nenhum que eu também vou a Espanha, só que eles como têm mais poder e ainda por cima vendem mais… estamos a falar de 13% de diferença [de 17% para 30%)]”.

Marco Guerreiro, comerciante português


Mas Marco sustenta que os espanhóis são bem-vindos por uma razão mais fundamental ainda: “O facto de os espanhóis virem cá é bom para valorizar o marisco e os barcos continuarem a pescar e se manter a atividade. Se isto fosse só o mercado nacional, o marisco era muito mais barato. Eles fazem o produto ganhar valor”.


Quanto aos últimos tempos, Marco assinala que a pandemia foi trágica para o setor: “A frota do marisco parou, mas nós continuámos, mesmo com quebras brutais. E mesmo agora isto não está a ser nada do que deveria ser, está a ser muito mais fraco do que no ano passado por esta altura, apesar de estarmos já no verão”.


Com a frota praticamente parada, a lota de Vila Real manteve os portões abertos mas não trabalhou, na prática, durante o confinamento, parou a 20 de março. “Estava fisicamente aberta, mas não havia leilão, porque não havia produto nem compradores”, esclareceu Alcina de Sousa ao JA. “Em meados de março, os armadores desistiram do marisco, devido aos preços muito baixos a que o conseguiam pôr em lota, pois não havia procura. Acabaram por deixar de ir ao mar”.


Devido à pandemia, no quadriénio de janeiro a abril a lota de VRSA teve uma quebra de 36% em volume de pescado e 43% em valor, face ao período homólogo do ano anterior, segundo dados disponibilizados pela Docapesca ao JA.

O marisco que chega de carrinha


Durante o confinamento, José Manuel (conhecido por Zé Manel), 67 anos, motorista e representante de uma empresa de armação, dedicava-se em exclusivo a ir “ver se os barcos estavam bem amarrados. E tinha sempre papelada para tratar no escritório da empresa”.


“Hoje cheguei de Sagres, mas posso vir de Sines, Sesimbra, Olhão, Portimão, nos postos em que o barco entrar. O armador é espanhol e a empresa é portuguesa, eu sou o representante. Não temos só um barco, temos dois. O meu filho é o ajudante. Faço isto há 22 anos”.

Zé Manel, representante de armador e motorista


Zé Manel quer ser o primeiro a descarregar, o que só pode acontecer se chegar à lota por volta das 2:30 da manhã. Ainda assim, muitas vezes, dá tempo para ir dormir a casa, em VRSA: “O barco não tem horário para entrar. Se eu pretender que o barco entre às 11 da noite, entra, ou às 3 da tarde. Se o barco chegar às 9 da noite a Sines, carrego, saio de lá às 9h30, chego aqui à meia-noite, 1h00 da manhã. Se me dá tempo durmo em casa até às 2:30 ou 3:00. Depois, se chegar em primeiro aqui sou o primeiro a vender, se chegar em 10.º tenho que esperar pela minha vez para descarregar e consoante a descarga assim é a venda, rende mais ou menos. Vendo mais caro se chegar mais cedo. Se houver muito marisco e eu entrar muito tarde, a venda cai”, explica o motorista em pleno cais, finalmente liberto da máscara e da venda do dia, já com o sol refletindo-se todo no Guadiana.


À hora a que nos fala Zé Manel, ainda há espanhóis dentro do edifício inaugurado há duas décadas, frente a uma bancada de cadeiras, se possível ainda mais vazias, empurrados contra o varandim pela própria vontade de divisar a qualidade do pescado, dedo em riste sobre o botão. São 7h30 da manhã, é segunda-feira.

João Prudêncio

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