Nossos sonhos que não foram

Leonard Goldberg
Leonard Goldberg
Psicanalista, Doutor em Psicologia pela USP (Universidade de São Paulo), autor de “Das tumbas às redes: luto e morte na contemporaneidade” (Benjamin Ed.)

A História é uma história de epidemias. Gestos, marcas, costumes e psicologias são talhados diante de irrupções epidémicas. Foi assim na Peste Negra, na Gripe Espanhola, na explosão da HIV/SIDA. É provável que a nossa geração seja a primeira na grande História a testemunhar centenas de dispositivos que operam a nível planetário tentando refrear uma Pandemia. Talvez isso seja a razão de a COVID não vitimar um quarto da população mundial, como a Gripe Espanhola fizera há cerca de 100 anos. Hoje a humanidade conta com estatística em tempo real, inteligência artificial e vacinas produzidas em menos de um ano para dar conta do flagelo. Isto, diferentemente da peste em si, é sem precedentes.


Ao mesmo tempo, somos levados a crer que nossos sonhos de vida perderam valor, foram barrados por conta das medidas de isolamento social e da desaceleração económica, além, é claro, de nossos doentes e mortos. Essa é a questão humana por excelência:

poderíamos estar vivendo uma outra vida, mais desejante e satisfatória que a de agora?


Independentemente da Peste, somos atravessados virtualmente e de forma contínua por essa questão. A Peste é uma parada que nos impele a responde-la. Parada forçada, parada de máquina. Mas a parada é algo que desvela, não que inventa. Somos, enquanto sujeitos, sequências de perdas: da primeira, infantil, às escolhas cotidianas. Escolho uma mulher, um país, uma profissão. Há outras realidades possíveis que morrem a cada passo de nossas vidas: outras mulheres, países, profissões, outros cenários, outros “outros”, outros “eus”.

Mas essas “mortes”, essas “outras que não foram”, não se dão sem efeito, e um dos efeitos é a pergunta constante, “E a realidade outra?”. Essa é a condição do modo subjuntivo: “E se eu estivesse em outro lugar?”.

Tal interrogação pode ter várias facetas. De um lado, algo meio autoritário, um imperativo das satisfações. Esse é o motor do negacionismo: “Eu não quero, eu não aceito perder um ano de vida para essa Pandemia” e suas consequências lógicas: “Isso tudo deve ser uma invenção da mídia, do globalismo ou dos meus filhos”. Do outro, o horizonte virtual: “Irei manter-me saudável, aguentar tudo isso isolado e depois farrear, viajar e gozar muito da vida”. O gozo desenfreado enquanto compensação da perda. Uma terceira faceta goza do próprio isolamento, que dá aval para excluir os outros do cotidiano: “Agora que não perco tempo com o social posso me aplicar em questões pessoais, leituras, e não tenha que a ver com encontros”.


O que está em jogo nessas saídas é um impasse, um princípio económico. Toda a vida desemboca na morte e, portanto, há certa economia de nosso desejo nesse entremeio, uma tendência à equação sobre nosso desejo, gostos, gastos, tudo que se orienta a antecipar, prever e controlar nossas perdas. O equívoco do cálculo é a pretensão de excluir o acaso, a lacuna e a perda.


Da Pandemia, algo muito interessante pode emergir. Há, enquanto invariável, um “colapso do tempo” que desemboca no próprio desmonte de nossa lógica, dessa equação que tenta responder à interrogação de forma contínua. Outra invariável: lidaremos com perdas e fracassos e o que chamamos de vida costuma ser o efeito de nossa lida com isso. O que emerge da perda costuma se transformar nas características mais interessantes de nossas vidas. Isso é um princípio, não é contingente, possível, pontual ou casual. É necessário, ainda que algumas culturas – como a norte-americana – pareçam se desenvolver a partir da negação de tal imperativo.


Outros tempos costumavam tratar o irrespondível pela via da mística. Eu prefiro a ficção. Dela, inventamos resíduos do impossível que se apresenta no “Há uma Pandemia”, e construímos qualquer quaisqueres que desejemos.

Leonardo Goldberg

Psicanalista

Doutor em Psicologia pela USP (Universidade de São Paulo)

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