O alferes Jorge da Cunha

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um arenilhense na guarnição militar da Tânger portuguesa do século XVII

Como é de conhecimento comum, com o advento da Expansão e dos Descobrimentos, muito foram os homens do Reino do Algarve que se lançaram na gesta norte-africana como comerciantes, moradores ou soldados. De facto, é conhecido o envolvimento de autênticas redes clientelares oriundas do Algarve e que acompanharam capitães como Nuno Fernandes de Ataíde, alcaide-mor de Alvor, ou Rui Barreto, alcaide-mor de Faro e vedor da fazenda do Algarve, durante as suas comissões no Norte de África. A procura de novos espaços de mobilidade e oportunidade despertaram, desde logo, o interesse de muitos algarvios que se batiam em prol da bandeira da subsistência e pela procura de melhores condições de vida. É exactamente nesse sentido que às cidades e fortalezas sob domínio português na costa Atlântica do actual Marrocos acorreram estes homens do sul, acostumados a guerrear os mouros que, oriundos de portos norte-africanos como Tetuão, Larache ou Salé, vinham assaltar com certa frequência as costas dos Algarves de Aquém-mar.

Prontispício do processo de Jorge da Cunha. A.N.T.T, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10654, fl. 1

No que à região do baixo Guadiana diz respeito, estão identificados recrutamentos de muitos “vizinhos” de Castro Marim, baluarte defensivo do Algarve, para as guarnições militares de cidades como Arzila, Azamor ou Safim. A identificação do processo da Inquisição de Jorge da Cunha acondicionado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, um natural “do lugar de Santo Antonio de Arenilha Reyno do Algarue” (Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10654, fl.1), vem agora revelar a participação de um arenilhense na defesa de Tânger, cidade ocupada por Portugal após a conquista de Arzila de 1471 e apenas desocupada pela Coroa em 1661, ao ser cedida a Inglaterra (juntamente com a cidade de Bombaim, na Índia) como dote de casamento entre a princesa Dª Catarina de Bragança e o rei inglês Carlos II.

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De acordo com o supracitado processo da Inquisição, o acusado, solteiro de 43 anos e filho de Brás de Almeida e de Marina Rodrigues, era militar com o posto de alferes na cidade de Tânger. Acusado de blasfémia, foi preso naquela praça norte-africana em 30 de Janeiro de 1657. Posteriormente, em 27 de Junho de 1658, deu entrada no cárcere em Lisboa, onde ficou até à leitura da sentença. Foi condenado a auto de fé, em 15 de Dezembro do mesmo ano, com vela acesa na mão, e açoutado nas ruas públicas de Lisboa, tendo assinado termo de segredo “em tudo o que vio, & ouuio nestes carceres, & cõ ell se passou acerca de seu processo, & nem por palaura, nem escrito, o descubra, nem por outras qualquer via que seja, sob pena de ser grauemente castigado” (fl.85).

Abjuraçam de vehementi assinada por Jorge da Cunha. A.N.T.T., Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10654, fl. 83

Posteriormente foi degredado para a ilha do Príncipe durante cinco anos. De um modo geral, trata-se de um documento que se reveste de particular interesse, na medida em que testemunha o percurso de alguém nascido em Santo António de Arenilha, no extremo sotavento algarvio, por volta de 1614, ou seja, num momento em que a vila da foz do Guadiana assistia ao seu gradual processo de despovoamento. Quer isto dizer que Jorge da Cunha seria descendente de um dos dois “vizinhos” referidos por Henrique Fernandes Sarrão na sua Historia do Reino do Algarve de 1600? Será que Jorge da Cunha residiu numa das “duas ou tres cazas” referidas pelo engenheiro militar Alexandre Massai, na sua obra Descripção do Reyno do Algarve de 1621? Ora, ainda que o processo da Inquisição refira Jorge da Cunha enquanto natural “do lugar de Santo Antonio de Arenilha”, não devemos excluir a hipótese de o documento referir-se ao termo de Arenilha e não à sede de concelho in stricto sensu, que acabou por se despovoar no decurso da primeira metade do séc. XVII, nomeadamente, com o rebentar da Guerra da Restauração que haveria de durar vinte e oito longos anos.

Termo de segredo assinado por Jorge da Cunha. A.N.T.T., Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10654, fl. 85

Outro elemento de grande interesse é a alusão que este processo faz ao posto de “alferes”. Com efeito, o alferes era, desde a Idade Média, o posto militar honroso a que cabia a defesa da bandeira ou estandarte em situações de guerra. Tanto a nível das tropas municipais, como a nível das ordens militares, o alfares distinguia-se como dignidade importante, acompanhando o comandante militar e indicando aos soldados a posição a seguir no decurso do combate. Este posto assumia-se, portanto, como um braço direito do comandante em contexto de batalha, normalmente atribuído a um guerreiro relativamente jovem e de reconhecidas capacidades militares. Ainda que o posto honroso da Idade Média não corresponda ipsis verbis às responsabilidades e competências do “alfares” de meados do século XVII, não deixa, no entanto, de se tratar de um oficial subalterno que assumia um papel de relevo no contexto da hierarquia militar seiscentista. A referência a Jorge da Cunha na qualidade de “alferes” da guarnição de Tânger, não obstante ser oriundo de um pequeno termo onde a principal actividade económica era a faina piscatória, acaba, portanto, por sugerir a sua entrada na vida militar desde tenra idade. Mais um pequeno contributo para a construção do conhecimento sobre os filhos de Santo António de Arenilha… Ad causam.

Fernando Pessanha

Historiador

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