O cavaleiro D. Garcia de Eça

“chamarãolhe de alcunha o Suleima, servio em Affrica…”

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Marraquexe representada em selo marroquino de 1923

Estávamos em Abril de 2015 quando publicámos no Jornal do Algarve (N.º 3030) um artigo informativo intitulado Os 500 anos do ataque português a Marraquexe e a acção do capitão Nuno Fernandes de Ataíde, de modo a assinalar o V centenário de um dos episódios bélicos menos conhecidos da História de Portugal. De facto, diz-nos Damião de Góis, na Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, que quando o alcaide-mor de Alvor e capitão de Safim decidiu atacar a “cidade vermelha”, pretendeu dirigir o ataque para a Porta de Side Belabeceti, voltada para Ceuta, por ser considerada como a opção mais segura. O plano que, teoricamente, parecia oferecer menos perigo foi, no entanto, contestado por um indivíduo chamado D. Garcia de Eça, alegando que a disposição daquele terreno dificultaria a movimentação da cavalaria, uma vez que os atacantes “auião dachar muitas açequias, & matamorras que lhes auiam dempedir o caminho” (Pt III, Cap. LXXIV). Por esse motivo, sugeriu este cavaleiro que fosse atacada a porta de Fez, já que o terreno parecia mais apropriado às suas intenções, opinião com a qual todos concordaram. Posto isto, torna-se pertinente perguntarmo-nos quem era este indivíduo.
De acordo com o genealogista Alão de Morais, em Pedatura Lusitana, D. Garcia de Eça era filho bastardo do clérigo D. Cristóvão de Eça, “chamarãolhe de alcunha o Suleima, servio em Affrica E casou em Çafim com D. Franca de Souza” (Tomo V, Vol. II), informação igualmente atestada pelo Livro de Linhagens do século XVI. Com efeito, A primeira alusão a D. Garcia de Eça em Safim surge quando Damião de Góis escreve sobre o ano de 1508, nomeadamente, quando o cronista refere que este fidalgo já se encontrava naquela praça com Diogo de Azambuja ainda antes de D. Manuel ter enviado os reforços com que se haveria de tomar a cidade pelas armas (Pt II, Cap. XVIII). Aquando do grande cerco de Safim de 1510, Nuno Gato e Nuno Fernandes de Ataíde referem D. Garcia como responsável por uma das estâncias, onde se encontrava acompanhado por “houtros criados de V. A.” (A.N.T.T., Gav 20, mç 1, N° 4l). O facto de Nuno Fernandes de Ataíde, Nuno Gato e Damião de Góis referirem-se a ele como “dom Garcia deça çuleima” indica tratar-se de um fidalgo de destacada posição social, condição, aliás, atestada pelo facto de integrar a reunião constituída pelos altos comandos militares de Safim e de Azamor antes do ataque a Marraquexe.
A pertinência da sua observação quanto à escolha do terreno onde a cavalaria deveria operar demonstra, desde logo, tratar-se de um fidalgo experimentado nas artes da guerra. Para além disso, o facto de recomendar o ataque através da “milhor terra”, fronteira à porta de Fez, indica que este fidalgo já conheceria o terreno em questão. Assim sendo, não será de desconsiderar que D. Garcia tenha participado na expedição realizada a aproximadamente 24 Km a oriente da “cidade vermelha”, em Janeiro de 1515 (A.N.T.T., C. C., Pt I, mç 17, Nº 61), ou que se tenha previamente informado junto dos cavaleiros que em Outubro de 1514 acompanharam o almocadém Diogo Lopes na entrada realizada às portas da Marraquexe (Góis, Pt III, Cap LIV).

As armas dos Eças no Livro do Armeiro-Mor, de João do Cró (1509). Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Casa Real, Cartório da Nobreza, liv. 19, fl.49v.

De facto, a experiência militar de D. Garcia de Eça Çuleima é atestada pelo próprio Damião de Góis noutros momentos da Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel. Veja-se, a título de exemplo, a sua participação na entrada que Nuno Fernandes comandou contra os aduares de Almedina, em 22 de Janeiro de 1511, dias depois do término do grande cerco a Safim de Dezembro de 1510 (Pt III, Cap XIII), ou à polémica situação em que Ataíde, temendo a traição dos mouros aliados face à notícia de um ataque do rei de Marraquexe, em 1512, ordenou ao célebre Lopo Barriga que todos os portugueses que se encontrassem em Aguz regressassem a Safim, à excepção do adail e de 60 homens de cavalo. Tal como podemos ler na crónica, entre os homens que então ficaram com Lopo Barriga encontravam-se “dom Rodrigo de Castro, & dom Garcia deça çuleima, & outros filhos, & caualleiros que se não quiseram ir” (Pt III, Cap. XXXV). Esta presença de D. Garcia ao lado de Lopo Barriga é, de resto, justificada pela relação familiar que os unia. De facto, é Nuno Fernandes de Ataíde que, em carta ao rei de 17 de Agosto de 1515, relata uma expedição protagonizada pelo adail, em que foi acompanhado por “Dom Garcia d’Eça, sseu cunhado” (A.N.T.T., Gav. 29, mç 2, Nº 61). Pouco tempo depois, é o próprio Lopo Barriga que, em carta a D. Manuel de 22 de Agosto, se refere à mesma expedição referindo ter sido acompanhado por “Dom Garcia meu cunhado” (A.N.T.T., Gav. 20, mç 2, Nº 51). Sabemos que em 10 de Dezembro de 1515 foi passado alvará “para se dar a D. Garcia de Eça 175.858 reais do último terço de seu casamento” (A.N.T.T., C. C., Pt I, mç 19, Nº 51) e que em 15 de Abril de 1516 foi passado outro alvará “para se dar a D. Garcia de Eça, Fidalgo da Casa (Real), 9.000 reais de mercê” (A.N.T.T., C. C., Pt I, mç 20, Nº 15).
Ao contrário do que se poderia pensar, D. Garcia de Eça não faleceu na malograda entrada em que Nuno Fernandes de Ataíde e muitos outros cavaleiros portugueses perderam a vida, em 1516. De facto, voltamos a encontrá-lo referido numa outra entrada realizada em finais de 1519 e comandada por D. Nuno de Mascarenhas – o capitão que veio a substituir Ataíde – em que D. Garcia foi ferido de três lançadas (Góis, Pt IV, Cap. XLIV). No ano seguinte, em 1520, voltamos a encontrar D. Garcia de Eça numa entrada sobre os Abda, na qual acompanhou Bentafufa e D. Rodrigo de Noronha, “o aravia” (Góis, Pt IV, Cap. LVI). Finalmente, em 13 de Agosto de 1524, foi passado alvará do rei D. João III para o feitor de Safim não constranger a mulher e os herdeiros de D. Garcia de Eça, “que morreu na dita cidade, pelos 12.740 reais que devia à Fazenda Real” (A.N.T.T., C. C. Pt II, mç 118, Nº 27) e em 3 de Setembro de 1524 houve provisão “para se dar a D. Francisca, viúva de D. Garcia de Eça, 20.000 reais de mercê” (A.N.T.T., C. C., Pt II, mç 118, Nº 169). Terminavam em Safim os dias de D. Garcia de Eça, a quem “chamarãolhe de alcunha o Suleima, servio em Affrica…”.

Fernando Pessanha
*Historiador

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