O “desafio” de fazer cinema no Algarve com “quase nada”

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Vera Casaca formou-se em Nova Iorque na School of Visuals Arts e na New York Film Academy. Realizou projetos em Nova Iorque e na Alemanha antes de regressar ao Algarve, onde encontra-se a trabalhar na produtora Original Features, com sede na Fuseta (Foto de Henrique Lopes)

Vera Casaca é uma jovem realizadora da Fuseta que esteve vários anos fora da região para perseguir o seu sonho de estudar argumento e realização em Nova Iorque. Agora, de volta ao Algarve, Vera Casaca está a trabalhar numa produtora onde faz filmes com baixos orçamentos. No último projeto, chegou mesmo a transformar a sua casa num estúdio de filmagens, uma prova da supressão a que realizadores e artistas estão sujeitos na região. “Queria pintar, partir, tirar janelas, fazer furos, derrubar paredes de onde fosse preciso sem que ninguém me dissesse ‘não podes’”, confessa. Apesar das dificuldades, a jovem realizadora afirma ao JORNAL DO ALGARVE que quer deixar a sua marca no cinema. Esta paixão começou muito cedo, quando escreveu uma história de ficção científica que a conduziu até à agência espacial NASA…

 

Jornal do Algarve – Pode contar-nos um pouco de si e da sua história de vida?
Vera Casaca – Sou uma olhanense de 34 anos que vive neste momento na Fuseta, mas sou um espírito nómada. A minha experiência de vida e familiar tornou-me como o vento: está em todo o lado mas não pertence a lado nenhum. A minha mãe é da Fuseta, o meu pai é angolano e a minha avó Julieta nasceu em Massachusetts, nos Estados Unidos. Vivi em Inglaterra e na Alemanha, antes de ir estudar argumento e realização para Nova Iorque. Ou seja, sou uma amálgama de muitas histórias, cores e culturas. Atualmente, estou de regresso ao Algarve a trabalhar na produtora Original Features, que desenvolve projetos de realização e argumento.

J.A – E como começou o seu percurso profissional?
V.C. – O ímpeto para criar e escrever começou cedo e esteve sempre subjacente a tudo o que fazia. Pintava, escrevia personagens para teatros na escola. Sem contar a ninguém, com 17 anos, escrevi uma história de ficção científica. Meses depois, chamaram-me e levaram-me para os Estados Unidos para conhecer a NASA. Nunca tinha saído fisicamente de Portugal, por isso, aquele foi um dos momentos mais importantes da minha vida, até caíram-me lágrimas de felicidade. Entretanto, o tempo passou e achei que devia arranjar uma profissão “a sério” e, depois da licenciatura e mestrado, seguiu-se um doutoramento em ciências médicas em Munique, na Alemanha. Obviamente que, logo após o doutoramento, peguei nas minhas malas e fui sozinha morar para Nova Iorque para estudar cinema.

J.A. – E porque decidiu iniciar a sua carreira no cinema, sabendo que esta é uma arte pouco apoiada em Portugal?
V.C. – Fazer cinema foi uma decisão completamente independente de o fazer em Portugal ou não. Vou filmar noutros países também, mas existe algo de especial para mim no Algarve, assim como no Alentejo. Atrai-me a ruralidade, a ingenuidade, os costumes tradicionais. São elementos únicos que admiro e que me são próximos.

J.A. – Como é fazer cinema na região? Quais as principais dificuldades de fazer cinema no Algarve?
V.C. – Boa pergunta. Pessoalmente, sinto que os demais vêm a nossa região como uma instância balnear. O problema começa logo aí. Em relação ao fazer-se cinema cá, sinto dificuldade em encontrar profissionais, técnicos e atores, pois estão na sua maioria em Lisboa. O acesso a equipamentos e materiais também pode ser um desafio.

J.A. – Essas dificuldades, derivadas dos baixos orçamentos, aguçam a criatividade?
V.C. – A necessidade aguça o engenho. Escrevo o que me apetece, mas em certa medida sei que tenho de adequar a história ao baixo orçamento com que trabalho. Não me importo, gosto de desafios. Se não consigo alugar um castelo inteiro para filmar, tudo bem, faço um castelo de palhotas e meto lá uma família de personagens aristocráticas. O que me custa mesmo é não conseguir pagar o devido dinheiro a quem trabalha comigo. Não acho correto trabalhar e não ser pago, ou ser pago apenas simbolicamente. Porque quem trabalha em cinema sabe o quão duro é. É essencial ter-se uma equipa boa, feliz e paga a tempo e horas.

J.A. – E vantagens, existem algumas?
V.C. – Sim. Como mencionei, é preciso desafiar a mente para substituir algumas passagens do guião para diminuir as despesas. Isso obriga-nos a desenvolver uma capacidade artística, mas sem prejudicar a história que queremos contar. É importante frisar que nos meios mais pequenos, quando temos pouco orçamento, fazemos parcerias com colaboradores locais e amigos, o que torna o projeto mais valioso a nível emocional.

J.A. – Curiosamente, o cinema foi algo importantíssimo para o nosso país até aos anos 60. Basta recordar Vasco Santana. Acha que é possível o cinema português retomar o seu lugar?
V.C. – Tenho a certeza que sim. Falei das dificuldades que encontro mas não somos vítimas de nada. Se não estamos contentes com a situação, ou nos vamos embora ou lutamos e mudamos o curso dos acontecimentos. Devemos falar destes assuntos, fazer debates, entrevistas, protestos. Tudo o que for necessário para darmos a volta. Haverão novos Vascos Santanas se criarmos oportunidades.

J.A. – Com quantos filmes e curtas-metragens já conta no seu currículo?
V.C. – Os meus principais projetos – co-escritos, escritos ou realizados por mim – foram “Se Poirot Estivesse Aqui” (2018), “Portugal Não Está à Venda” (2017) e “Ao Telefone com Deus” (2016). Neste momento, estou a terminar de escrever uma longa-metragem com um realizador alemāo/porto-riquenho. Mas já trabalhei noutros projetos, como no filme alemāo “Aurora”, em que fui assistente de produção. Lavava pratos, fazia a comida para a equipa, ajudei na direção de arte, tudo o que fosse preciso. Isto passou-se nos Alpes Bávaros, a 1400 metros de altitude. Foi um dos sítios mais imponentes e magníficos em que estive.

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J.A. – No seu último trabalho, “Se Poirot Estivesse Aqui”, transformou a sua casa num estúdio de filmagens. É mais uma prova da supressão a que realizadores e atores estão sujeitos em Portugal? E é também uma forma de fazer cinema com os recursos disponíveis… com quase nada?
V.C. – Até a um certo ponto sim, mas a verdade é que mergulhei no hiato involuntário antes deste último filme. Deixei de conseguir escrever, porque fui assolada por inseguranças até que, recentemente, passei por um grave trauma familiar que me destroçou. No meio da dor, inesperadamente, escrevi “Se Poirot Estivesse Aqui” em dois dias. Tive sorte, porque a história se passava apenas num local. Decidi que filmaria na minha casa. Não tinha dinheiro para alugar um local e não queria depender absolutamente de ninguém. Queria pintar, partir, tirar janelas, fazer furos, derrubar paredes de onde fosse preciso sem que ninguém me dissesse “não podes”. Assim, assumi o controlo total.

J.A. – Quais os temas que gosta de retratar nos seus filmes e porquê?
V.C. – Temáticas variadas. Mas onde me sinto mais feliz e capaz é na escrita e realização de comédia negra e absurda. Ouvi comentários de que, se queria ser levada a sério, teria de fazer dramas. Já fui criticada. Contudo, depois dos duros eventos que passei, deixei por completo de importar-me com opiniões alheias. Respeito-as mas não me afetam. Vou fazer aquilo que me apetecer, trabalhar com quem me apetecer, realizar o que me apetecer. O resto é ruído de fundo…

J.A. – Festivais como o de Berlim, Cannes e Veneza são hoje trampolins estratégicos para a promoção de filmes e de novos autores no cinema. Já concorreu a alguns festivais internacionais?
V.C. – Nunca concorri. Seria uma excelente oportunidade, sem dúvida, mas ainda tenho muito que aprender e melhorar nos meus filmes. Também, a minha opinião sobre os festivais é ambivalente. O realizador Woody Allen praticamente nunca foi a uma entrega de prémios (e relembro que ganhou Cannes, óscares, etc.), pois acredita que fazer filmes não se trata de uma competição. Concordo com ele. Imaginam o quão duro para uma equipa inteira que investe meses da sua vida e o seu coração numa obra para depois ser excluída por meia dúzia de pessoas? É duro. Gostos e opiniões sobre arte serão sempre subjetivos e não determinantes da sua qualidade.

J.A. – Na produção cinematográfica, nomeadamente na realização, há tendencialmente mais homens a trabalhar do que mulheres. Que feedback tem enquanto mulher neste meio?
V.C. – Sinto-me só. Essa é a verdade. Gostaria de ver uma maior igualdade de género. As mulheres estão a “pegar fogo” em Hollywood mas não sei quando esse “fogo” chegará cá a Portugal, para queimar a divisão entre homens e mulheres atrás da câmara. Recentemente, num debate sobre “Mulheres nos Audiovisuais”, lancei a pergunta ao público: “Quais as vossas realizadoras favoritas?”. Ouvi três ou quatro nomes e a sala mergulhou num silêncio doloroso. Não me contento com lamentos. Se não estamos satisfeitos, então temos de contribuir para a mudança.

J.A. – É preciso muita determinação para seguir uma carreira no cinema em Portugal? Que conselhos daria aos jovens cineastas que estejam neste momento com algumas dúvidas em relação ao seu futuro?
V.C. – Criei um canal no youtube, chamado “Atelier de Cinema”, onde partilho dicas, falo de cinema e tento motivar. A inspiração é muito romantizada, nada supera a disciplina e iniciativa própria. Se tiverem oportunidade de estar num cenário, nem que seja a segurar um cabo, façam-no porque se aprende. E se o sonho é grande, também será o nosso sacrifício. Para o filme “Se Poirot Estivesse Aqui” tive o apoio da produtora Original Features, junta de frequesia Moncarapacho-Fuseta, de colaboradores e amigos que tão carinhosamente me apoiaram, mas abdiquei muito da minha vida social e de pequenos luxos para juntar dinheiro. Alguém precisava de pagar o catering, combustíveis, adereços, guarda-roupa, tintas, móveis, dormidas, etc. Passei dias sem dormir. Mas não me queixo, foi a minha opção.

J.A. – Tem novos projetos em mãos?
V.C. – Sim, vários. Estou a escrever um livro sobre mulheres realizadoras, que está a revelar-se um processo repleto de epifanias. Encontro encorajamento e sei que quem o ler irá aprender e gostar. Trata-se de alargar horizontes. Tenho mais projetos de cinema mas são secretos por enquanto…

J.A. – Parece que quer deixar a sua marca no cinema e encorajar outras mulheres a fazer o mesmo…
V.C. – Logo a seguir à escrita e realização, o mais importante para mim é estimular e encorajar outras raparigas e mulheres. Parafraseando o que a atriz Frances MacDormand disse quando recebeu recentemente o óscar: “Atrizes, argumentistas, designers, produtoras, compositoras… Todas nós temos histórias para contar e projetos que precisam de financiamento, não venham com conversinhas no ‘after party’! Convidem-nos ao vosso escritório… Ou venham ter aos nossos… E podemos falar deles (projetos)”. Foi lindo ouvi-la dizer isto. Quero viver num mundo mais aberto, menos misógino, racista, preconceituoso.

J.A. – Na sua opinião, o cinema pode ser encarado com uma atividade estratégica para o Algarve?
V.C. – O Algarve é um paraíso com as nossas serras, rios, praias, fauna, flora, cultura, arquitetura e gastronomia. Fazer mais cinema aqui criaria uma descentralização das grandes produções e sem dúvida que traria mais desenvolvimento, emprego e coragem artística que muita falta faz.

J.A. – A nossa realidade é muito diferente do cinema norte-americano, que tem um mercado enorme. Na sua opinião, qual o futuro do cinema em Portugal?
V.C. – Os gostos são cultivados. Quanto mais cinema português se fizer e se disponibilizar nas salas de cinema, mais o hábito se entranhará na nossa cultura. Tocando novamente nos apoios estatais e festivais, viver na cultura do “vamos fazer um filme para mandar para os festivais lá fora, ganhar prémios, mas que o cidadão português – que paga esse filme com os seus impostos – nunca o irá ver na sua vida” é insustentável, egoísta e lobista.

 

(ENTREVISTA PUBLICADA NA EDIÇÃO DO JORNAL DO ALGARVE DE 26 DE JULHO)

Nuno Couto|Jornal do Algarve

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