O engenheiro militar Manuel de Azevedo Fortes em Loulé (1700)

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Ao longo de toda a Idade Moderna, sobretudo nas ocasiões em que se pretendeu avançar com a edificação de estruturas de maior complexidade técnica, a carência de mão-de-obra especializada residente no Algarve obrigou a destacar para esta região arquitetos e engenheiros militares, incluindo alguns dos mais qualificados profissionais dessas áreas. Uma dessas figuras foi, sabemo-lo agora, Manuel de Azevedo Fortes (1660-1749), nome maior do Iluminismo de Setecentos, indivíduo que D. João V nomeia engenheiro-mor do Reino (1719), o responsável pela introdução da cartografia científica em Portugal e autor dos primeiros estudos e tratados de engenharia em língua portuguesa, incluindo a obra “O engenheiro português” (1729). Este facto, que não consta de nenhuma das biografias que até à data lhe foram dedicadas, é corroborado pela descoberta de uma assinatura do engenheiro militar num documento de âmbito paroquial lavrado, no ano de 1700, na então vila de Loulé.


É a 27 de outubro do referido ano de 1700 que, ao redigir o assento relativo a um casamento celebrado na matriz de São Clemente de Loulé, o Padre-beneficiado Manuel Fernandes arrola entre as testemunhas que assistiram à cerimónia “o capitão Manuel de Azevedo Fortes”. E, no lugar a isso reservado, lá está a assinatura do dito militar. A dúvida que de imediato se poderá colocar é: será o célebre engenheiro-militar de D. João V, ou somente um homónimo que, por coincidência, também estava ligado à tropa? Que razões levariam o futuro engenheiro-mor a estar na vila algarvia no dealbar do século XVIII? A esse respeito, as informações contidas no supradito assento nada acrescentam, limitando-se a indicar o nome, naturalidade e filiação dos nubentes, José Teixeira, nascido em Vila Real, filho de Matias Rodrigues e de Antónia Dinis, e Maria de Jesus, de Loulé, filha de João Romão e Simoa Rodrigues, para além de arrolarem mais três testemunhas: o tenente Manuel da Conceição Mexia, o Padre Francisco Pinto Cabral e o Dr. José Pereira Murça das Neves. No mesmo sentido (tanto quanto nos foi possível apurar), nenhum dos estudos biográficos dedicados ao percurso profissional do engenheiro-mor Manuel de Azevedo Fortes mencionava a sua alegada passagem pelo Algarve. Mas, a ser ele, o que é que o poderia ter trazido a Loulé? Certamente motivos profissionais, mas quais? Teria sido alguma obra de fortificação, por exemplo a construção do intitulado “Forte de Loulé”, que em 1754 se afirma “estar feito há pouco tempo” e ter sido erguido “pelos moradores da dita vila [Loulé] para defensão daquele sítio, onde têm suas fazendas”? Ou, em alternativa, será que Manuel de Azevedo Fortes estava no termo de Loulé para levar a cabo algum levantamento cartográfico? Em teoria, qualquer das hipóteses parecia admissível. Porém, como veremos, a explicação era outra.

Retrato do engenheiro-mor
Manuel de Azevedo Fortes


De facto, a resposta às questões acima colocadas é-nos dada através do processo de habilitação para a Ordem de Cristo do engenheiro Manuel de Azevedo Fortes, datado de 1705. Nesse documento, o engenheiro descreve os serviços que tinha prestado à Coroa até ao referido ano, incluindo uma anotação na qual dá conta de como entre 1696 e 1700 se havia deslocado “a várias partes deste Reino e ao do Algarve a ver e examinar algumas minas”. Confirma, portanto, que esteve na região algarvia na transição do século XVII para o XVIII, no âmbito de uma inspeção geral às minas do sul do país, o que nos permite concluir que efetivamente será sua a assinatura existente no assento de casamento celebrado na matriz de São Clemente de Loulé a 27 de outubro de 1700. Se alguma dúvida persistisse a esse respeito, veja-se como em meados do século XIX João Baptista da Silva Lopes declara, ao escrever sobre a freguesia louletana de Alte: “Junto ao povo há minas, que consta haverem sido abertas três vezes por ordem do governo, sendo a última em 1700, quando estiveram ali mineiros que tiraram bastante cobre, o qual mandaram para Lisboa”. De modo similar, ao referir-se à vizinha aldeia da Tôr, informa: “Perto da serra há mina de cobre e existem vestígios de que foi lavrada”. Confirma-se assim a existência histórica de minas de cobre no termo de Loulé e, para além disso, há referências objetivas à reabertura da mina existente nas proximidades de Alte no ano de 1700, coincidindo com a estadia do engenheiro Manuel de Azevedo Fortes no território. Perante isto, é legítimo concluir que o futuro engenheiro-mor do Reino esteve em Loulé no princípio do século XVIII, onde, entre outras coisas, terá dirigido a reativação dos trabalhos de exploração da mina de cobre de Alte.

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Por coincidência (ou não), em 1708, poucos anos depois da passagem por Loulé do engenheiro militar Manuel de Azevedo Fortes e de se ter retomado a laboração na mina de Alte, a câmara realiza um “inventário dos ferros e mais apetrechos das minas da Tôr e de Alte”. Identificadas como “ferramentas que vieram do Alentejo”, são incluídas nesta lista: picaretas, enxadas, picões, alavancas, “maças de pisar pedras de metal”, pás, marrões, macetas, martelos, machados, uma “broca de fazer minas com duas argolas”, barricas de fundição, bocais de ferro de sacas de tirar água, uma “balança de arame, grande”. Para além destes instrumentos, que se tinham trazido do Alentejo, o rol incluirá ainda as “ferramentas antigas que se acharam em a Tôr e novas que fez o ferreiro em a Tôr”, a saber: picaretas, marrões, picões, enxadas, martelos, machados, espetões e barras de ferro para “mover metal”, pranchas, canos, um esporão de ferro com “rabo de forquilha”, arcos de ferro, “brocas de fazer minas”, baldes com arcos de ferro, candeias, macetas, roldanas, uns “foles grandes das minas”, brochas “que sobraram de um milheiro que veio de Lisboa para concerto dos foles”, dez peles “que ficaram de uma dúzia que veio de Lisboa para se concertarem os foles”, seis “maromas” [cordas] grossas de esparto, “alcofões de esparto” e cinquenta e três cadinhos “de derreter metal”. Não há dúvida, portanto, de que no início do século XVIII, no seguimento da visita técnica do engenheiro militar Manuel de Azevedo Fortes, é temporariamente reativada a mineração na mina de Alte (e na da Tôr?), processo que inclui a aquisição ou fabrico de todo um conjunto de ferramentas com as quais se avança para a extração, processamento e fundição de minério de cobre.


Em resumo, e a partir da identificação de uma simples assinatura num documento paroquial, foi possível documentar a passagem pelo termo de Loulé, no dealbar do século XVIII, do engenheiro-militar Manuel de Azevedo Fortes, um dos mais brilhantes teóricos do Portugal de Setecentos, e até associar o seu nome a uma obra em concreto: a reativação da mina de cobre de Alte. Para além de constituir uma adenda àquilo que é a sua biografia, este episódio torna admissível a passagem do futuro engenheiro-mor do Reino por outras povoações da região e, nessa medida, abre igualmente caminho a novas e mais profundas pesquisas em torno daquilo que terá sido a atividade de exploração de minério no Algarve da Idade Moderna.

Marco Sousa

*Historiador de Arte

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