O Mar ao fundo

O Mosaico do Oceano, peça fundamental do período romano, que integra a coleção do Museu Municipal de Faro, é um dos testemunhos mais significativos da importância do mar na história do Algarve.


Nos favores encomendados ao deus Oceano atesta-se a associação da comunidade às atividades marítimas. A ligação e a dependência dos homens de negócios, armadores ou produtores de preparados de peixe, em relação ao mar são declarativas da proteção divina.


Em igual circunstância é evidência do mar enquanto grande estrada entre os territórios da bacia do Mediterrâneo e esta margem do Atlântico, e, da condição de Ossonoba enquanto cidade portuária.


Hoje pouco sabemos da ciência da navegação, das rotas, das correntes e dos faróis. Somos incapazes de avaliar os ventos, decifrar as cartas marítimas, fechar um nó, nomear as estrelas que conduzem os mareantes, interpretar os glossários náuticos, nomear os vários tipos de redes. O mar é um autêntico desconhecido. Conhecemos-lhe o rosto, mas ignoramos-lhe a alma.


As cidades algarvias perderam a dimensão portuária. As estradas e os céus tornaram-se mais fáceis e mais rápidos do que os mares. Os caíques cederam a sua carga à ferrovia e aos camiões. A pesca perdeu importância. É da história, e apenas dela, o fomento pretendido pelo Marques de Pombal. As armações de atum ao longo da costa. A indústria conserveira até há bem pouco tempo. Esse mar antigo passou a ser uma pálida recordação da sua própria existência.


Quando me pergunto sobre o papel atual do mar na estrutura económica da região não sei responder. A minha perceção é de subordinação. O mar parece estar submisso, como tudo o resto, aos impulsos do Turismo. O que não deixa de ser um paradoxo já que essa indústria resulta, entre nós, e em parte, da sua existência. Atrevo-me a afirmar que o mar, nestas circunstâncias, tem uma importância equivalente à de uma piscina. Destituindo-o de história, desinteressando-se dos seus saberes e das suas tradições o Turismo usa-o para banhos.


E isso parece evidente quando se equaciona o mar dentro da própria esfera do Turismo. Para além dessa relação direta faz sentido perguntar que aproveitamento é que se está, efetivamente, a fazer das valências do mar na criação de produtos turísticos qualificados e diferenciadores onde a paisagem, o património cultural e arqueológico, os desportos náuticos e a gastronomia são elementos de elevado valor acrescentado?


Com a sua tutela entregue, ou colocada ao serviço, da indústria turística o mar tem sido reduzido à condição de paisagem. Uma «selfie» com um por-do-sol ao fundo. Um gin com um travo litoral. Um solário onde se refresca a pele antes de ir deitar os ossos na areia.


Se o Turismo o subalterniza ao ponto de podermos considerar, exageradamente é certo, o mar do Algarve como a «banheira» natural das unidades hoteleiras também não deixa de ser verdade que a montante desse menosprezo (que se pode aduzir da inércia em promover e diversificar o produtos turísticos a ele diretamente ligados) a região tem sido pouco hábil a desenvolver «clusters» ligados à economia do mar. E nesta área as possibilidades são imensas. Desde os transportes marítimos, pesca, recreio, construção naval, portos, investigação científica aplicada às ciências náuticas, pesquisa sobre os seus recursos, aplicação da fauna e da flora à indústria farmacêutica e aos produtos cosméticos, as propriedades fertilizantes das algas.


Importava, nesse sentido, perceber em que áreas as empresas e instituições regionais poderiam desempenhar um papel determinante e apostar nessa preponderância.


Para isso julgo ser necessário mudar a nossa perceção coletiva e colocarmo-nos na disposição de voltar a ter o mar como um dos elementos centrais da nossa economia.


Citar António Pereira «A minha rua tem o mar ao fundo» será certamente mais poético do que dizer «O meu quintal tem uma piscina ao centro». No entanto o valor factual dos dois versos, lidos à luz do presente, é equivalente. A poesia só se cola à realidade na sua dimensão ilustrativa.


É um mar sem história nem mitologia. Tornou-se paisagem apenas. Litoral tão utilitário como um tanque de pastilhas azúis ou os escorregas de um parque aquático. As cidades deixaram de ser portos para se tornarem cidades à beira mar. Apesar de tudo ainda é subsidiário de um tributo ao deus Oceano. Os homens do Turismo poderiam erguer-lhe um monumento. Os rendimentos do Algarve a ele se devem. Em parte substantiva.


Talvez se consiga voltar a colocar o mar no centro das nossas vidas. A considerá-lo nas ideias e nas estratégias de um Algarve futuro.


Sendo certo, como dizia Séneca, que também em relação às questões do mar «Não há ventos propícios se não se sabe para que porto se quer ir.».

Salvador Santos

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