O paraíso criminal de Arenilha: pirataria, venda de escravos e corrupção no extremo sudeste algarvio

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Os últimos anos têm vindo a assistir a uma exponencial publicação de estudos acerca do extremo sotavento algarvio na transição da Idade Média para a Idade Moderna. Estudos publicados em revistas municipais, culturais, académicas e cujos temas têm vindo a ser defendidos em congressos, seminários ou conferências dinamizadas pelas universidades e por outras instituições civis e militares que trabalham em prol da construção do conhecimento. É, portanto, nesse sentido que se vai desenvolvendo o estudo da História Local e Regional com base de sustentação científica, nomeadamente, no que diz respeito à actividade humana na foz do Guadiana durante a designada “Idade de Ouro” da História de Portugal.


De facto, a importância geo-estratégica do grande rio do sul não tem sido devidamente considerada pelos investigadores que se têm dedicado ao estudo do Baixo Guadiana na Idade Moderna. Desconsideração, aliás, manifestamente grosseira, já que foi o século XVI a assistir ao grande desenvolvimento demográfico, urbanístico e económico dos três municípios que actualmente constituem a Eurocidade do Guadiana. Com efeito, as grandes novidades a nível da investigação historiográfica têm incidido especialmente sobre Arenilha, nomeadamente, no que se refere à actividade da pirataria, do contrabando e da venda de escravos que tinham lugar no seu concelho. Por outras palavras, um conjunto de actividades ilegais, manifestamente danosas para o erário público e altamente representativas da corrupção endogâmica que unia as famílias que detinham as alcaidarias do extremo sudeste algarvio.


Uma das grandes surpresas a nível da investigação recaiu, desde logo, sobre a figura de António Leite, o cavaleiro da Ordem de Cristo a quem foi atribuída a alcaidaria da vila de Arenilha, em 1542, como compensação pela perda da capitania do castelo de Mazagão, depois de uma vida de serviços prestados à Coroa no teatro de operações hostil e sangrento que foi a cruzada portuguesa em Marrocos. É certo que a experiência do antigo capitão no combate contra os mouros se revelava altamente pertinente para a defesa de um território onde eram desembarcadas mercadorias de interesse e que era frequentemente assaltado pela pirataria magrebina. Realidade, aliás, atestada por Bernardo Rodrigues, que refere os desembarques de mercadorias, cavalos e escravos enviados para Arenilha por ordem de D. João Coutinho, Conde de Borba e capitão de Arzila, assim como os ataques de que a vila era alvo por parte da pirataria.

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No entanto, a identificação de novos documentos vem indicar que a alcaidaria de Arenilha não foi entregue a António Leite por visão estratégica de D. João III, ainda que este capitão apresentasse um currículo militar apropriado para o desempenho de tal cargo. Ora, de acordo com um documento (A.N.T.T., Chancelaria de D. João III, liv. 3, fl. 154) ao qual já fizemos referência em “A venda de escravos mouriscos/berberiscos em Arenilha,,,” publicado pela Universidade de Sevilha, decorria o ano de 1523 quando o escrivão da alfândega de Mazagão despachou ilegalmente “um navio carregado escravos e doutra muita mercadoria de Mazagão para Arenilha”, desviando os direitos que pertenciam à fazenda real. Uma fonte, portanto, de singular importância, já que atesta que os escravos mouros aprisionados nas cavalgadas que os portugueses lançavam no Norte de África eram contrabandeados na vila da foz do Guadiana, com vista ao mercado castelhano. Porém, e mais importante do que a identificação de mais um documento acerca da venda de escravos em Arenilha, é verificarmos que o capitão de Mazagão era, por essa altura, o mesmo António Leite. Este documento vem, portanto, indicar que terá sido o próprio capitão a solicitar ao rei a alcaidaria de Arenilha como compensação pela perda da capitania de Mazagão. Por outras palavras, reclamou o senhorio da vila para onde despachava escravos e onde esta prática, danosa para os cofres do Estado, se lhe apresentava manifestamente rentável. Note-se, porém, que a actividade inerente a este contrabando de escravos só se tornava possível com a cumplicidade/compadrio das autoridades locais. Foi, portanto, sem grande surpresa que constatámos que o capitão António Leite casou com D. Maria de Vasconcelos, neta por via materna de Vasco Eanes Corte-Real, alcaide-mor de Tavira, e neta por via paterna de Lopo Mendes de Oliveira, alcaide-mor de Castro Marim. Quer isto dizer que o capitão de Mazagão e Azamor que traficava escravos na foz do Guadiana estava aparentado com duas das famílias mais poderosas do sotavento algarvio, compadrio que desde logo facilitava a evasão fiscal e que transformava Arenilha na capital algarvia do contrabando que escapava ao controlo do Estado.


Resumidamente, a actividade da pirataria, o contrabando de escravos e a corrupção transformavam o concelho da foz do Guadiana num autêntico paraíso criminal. De resto, é exactamente esta singularidade histórica que oferece atractivas potencialidades a nível da criação de novas imagens de marca com vista ao desenvolvimento do turismo cultural e com consequentes repercussões a nível da economia local. Haja visão estratégica para o concretizar.

Fernando Pessanha

*Historiador

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