O pássaro e o tempo

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Deu-nos, neste Março, o tempo, a chuva e o vento que nos devia ter dado em Novembro. Atraso desculpável este, afinal isto anda tudo enleado, ninguém cumpre a horas as suas obrigações, não se vê como devesse o clima ser excepção. Bom, dir-me-ão, mas o clima é coisa séria, categoria estável do planeta tendendo à repetição dos efeitos em épocas determinadas por influência do Sol e das rotações e translações da Terra, e não pacto evanescente decorrente da vontade e de vinculações legais. Não sei se estou de acordo. Dizem-me cientistas e filósofos que certas acções de exploração de recursos e métodos de actividade industrial visando a criação de riqueza, produzem alterações na atmosfera que interferem com os gelos polares, os volumes dos mares, o trânsito dos ventos, as radiações solares, e originam mudanças nos regimes das chuvas e dos temporais. Replicam outros que o que a actividade humana gera, e de que naturalmente os nossos sentidos só podem perceber, ou os nossos exercícios dedutivos apenas conseguem inferir, numa escala muito limitada pelos seus horizontes finitos, são pequenas perturbações que nem se aproximam dos fenómenos planetários que as interacções cósmicas determinam no devir dos tempos. E que é disso que se trata quando falamos de alterações climáticas.
Num destes dias do meado do mês, estando a atmosfera nessa tardia agitação outonal, passou aqui no amplo largo calcetado junto à ria uma andorinha. Voava lesta, como é seu atributo, rente ao chão, galgando num instante as letras garrafais com o nome da cidade desenhadas no empedrado. Ia de nascente para poente como se buscasse o sol que se encobria no cair da tarde para os lados do barlavento. Não voltei a vê-la nesse dia nem nos seguintes. Não me disse onde ia nem o que buscava. Supus que fosse uma batedora, uma observadora que viesse antes da comunidade para se inteirar do tempo e do sustento, o que comunicaria às demais através dos seus primorosos sensores vitais. E isto por causa das mudanças, das alterações climáticas. Era de facto temporão, o aparecimento. Mas, refletindo melhor acabei achando que a minha suposição era bacoca. As aves, os bichos, estão sintonizados com o mundo, com a natureza, com as forças cósmicas e telúricas que tudo comandam, de um modo perfeito, tendo os seus instintos preparados para apreender com antecipação até os mais pequenos sinais do que na atmosfera e na litosfera, sob a crosta se desenvolve. Então, a ideia de que uma colónia de andorinhas precisasse de enviar membros seus para um reconhecimento de local de imigração não é muito sábia. Quando na Namíbia ou na África do Sul o inverno se começa a anunciar já elas sabem como está o tempo no Algarve com ou sem as perturbações que vamos sentindo.
Agora já aí andam todas na sua lufa-lufa impetuosa repondo com a mosquitada, mosquedo e demais artrópodes voadores (boa) as energias que os dez mil quilómetros de travessias lhes levaram. Daqui a pouco hão-de meter-se na construção civil fazendo de barro as suas casas, como o Manuel do Joan Manoel Serrat.
Alegrei-me a recebê-las e comentei com um vizinho o que me sugerira aquela primeira, a peregrina.
Este meu vizinho, bom homem, deitou-me um olhar compadecido e respondeu-me cheio de pena: eu por acaso vi esse pássaro, doutor; era um melro…

Rogério Silva

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