O romantismo ainda existe no futebol

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Não, Adele não é fã do Leicester – pelo contrário, até apoia o Tottenham, 2º classificado -, mas o “hit” mais recente da cantora britânica encaixa na perfeição no momento atual do Leicester, que derrotou o Sunderland, no domingo, por 2-0, na 33ª jornada da Premier League. “Olá, Europa” (“Hello, Europe”, em inglês) escreveu o clube nas redes sociais esta manhã, agora que tem encontro garantido, pela primeira vez, com os grandes clubes na Liga dos Campeões da próxima época – quando faltam cinco jornadas para o final do campeonato e o 2º classificado, o Tottenham, está a sete pontos da liderança.

O feito da equipa que no ano passado, por esta altura, estava a lutar para não descer de divisão é inversamente proporcional ao que vão fazendo Chelsea (o atual campeão é 10º), Liverpool (8º), Manchester United (5º), Manchester City (4º) e Arsenal (3º) esta época. E é aqui, diz Jaime Pacheco, que a história do Leicester difere da do Boavista, surpreendente campeão português em 2000/01. “É verdade que quando vejo alguma equipa fazer isto me lembro de nós, mas em Inglaterra isto também acontece pela crise de favoritos – o Chelsea não está bem, os ‘Manchesters’ também não e o Arsenal promete mas nunca lá vai – e na nossa altura tivemos uma guerra forte com o FC Porto e com o Sporting”, recorda o ex-treinador do Boavista.

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O feito do Leicester é tão ou mais incrível do que o do Boavista e do que o sol que brilhava ontem em Sunderland quando Claudio Ranieri desatou a chorar depois de Jamie Vardy marcar mais dois golos decisivos – o primeiro deles com a simplicidade típica da equipa: passe longo de Drinkwater, corrida rápida de Vardy na profundidade e… golo. “É difícil explicar o que sinto cá dentro, mas não me estou a queixar”, disse Ranieri no final.

Jaime Pacheco compreende o sentimento do homólogo italiano. “O que o Leicester está a fazer é fenomenal e temos de dar importância a quem merece, porque o Ranieri tem sido fantástico, até pelas estratégias fora do campo. Ele há umas semanas deu férias aos jogadores e mandou-os aparecer só para jogar. Isto demonstra uma grande dimensão humana e uma grande capacidade de gestão de balneário”, diz o técnico português.

Não é fácil explicar este ponto alto da carreira do treinador de 64 anos que nunca ganhou grande coisa (em 30 anos de carreira, o melhor terá sido uma Supertaça Europeia, com o Valência, em 2004) e, há ano e meio, estava a ser despedido da seleção grega depois de uma derrota humilhante contra as Ilhas Faroé. Quando Ranieri pegou no Leicester, em julho de 2015, ninguém esperava grande coisa. Nem o próprio. “Lembro-me da minha primeira reunião com o dono, quando cheguei. Ele disse-me ‘Claudio, é muito importante ficarmos na Premier League’. Respondi-lhe: ‘Claro, vamos trabalhar muito e tentar conseguir a permanência’. Chegar aos 40 pontos era o nosso objetivo”, explicou o treinador num emocionante relato na primeira pessoa escrito na semana passada no site “The Players’ Tribune”.

Nove meses depois, o Leicester tem 72 pontos e Ranieri é o herói dos jornais italianos, que fazem capa com o “estilo italiano” das vitórias. Não é que os ingleses tenham propriamente adotado o “catenaccio” – apesar de 18 das 20 vitórias terem sido conseguidas com menor posse de bola do que os adversários -, mas a matreirice (o Leicester até tem como símbolo a raposa) italo-inglesa nota-se no 4-4-2 marcadamente defensivo, que aposta mais nos ataques rápidos e nos contra ataques para chegar ao golo.

E que tem quatro pilares essenciais que no início da época eram pouco mais do que verdadeiros desconhecidos, até em Inglaterra: Kasper Schmeichel, o guarda-redes com mais jogos (14) sem sofrer golos; N’Golo Kanté, o médio que mais desarmes faz na Europa e limpa tudo o que passa por ele (como dizia Quinito: é o médio “rabo de vaca”, passa de um lado para o outro e limpa toda a…); Riyah Mahrez, o argelino que é o criativo da equipa, nas alas ou no meio; e Jamie Vardy, o goleador inesperado que aos 24 anos ganhava a vida a trabalhar numa fábrica e aos 29 se estreou como internacional inglês.

“Praticamente nenhum deles tem pinta de jogador”, afirma Pacheco. “Até o Vardy se fosse à experiência ao clube da minha terra não o deixavam treinar. Olhas para ele e nem físico tem. Mas ele e os outros são práticos, objetivos e eficientes e têm uma alegria muito grande no jogo, que é o que faz os campeões. Nós às vezes olhamos para alguns jogadores em Portugal e parece que estão a fazer um frete a jogar”, considera o ex-treinador do Boavista.

Ranieri também só tem elogios para os seus ‘desconhecidos’. “Talvez já os conheçam agora. Jogadores que eram considerados demasiado pequenos ou demasiado lentos para os grandes clubes”, escreveu. “Quando vi o Kanté a correr pensei que tinha umas pilhas escondidas nos calções. Nunca parava. Disse-lhe: ‘Um dia vou ver-te a cruzar uma bola e ires lá cabeceá-la”, gracejou. “Jamie Vardy não é um futebolista. É um cavalo fantástico. Tem de ter liberdade para andar por todo o relvado, mas tem de ajudar-nos quando perdemos a bola”.

Não é que o Leicester tenha uma qualidade de jogo impressionante – o Tottenham até tem mais golos marcados (60 contra 57) e menos sofridos (25 contra 31) -, mas o espírito de Ranieri e dos jogadores, aliado a uma felicidade cósmica indispensável aos triunfos dos “underdogs” (o último campeão inglês inesperado foi o Blackburn Rovers, em 1994/95), fez de um pequeno grupo uma grande equipa. “Antes dos jogos, dizia sempre que não queria que sofressemos golos. Mas sofríamos sempre. Tentei tudo. Por isso, antes do jogo com o Crystal Palace, prometi-lhes: “Vá lá, rapazes, se hoje não sofrerem golos, pago a pizza”, contou Ranieri.

O Leicester ganhou 1-0 e o treinador lá teve de pagar a pizza. “Cumpri o prometido e levei-os à Pizzaria Peter, em Leicester, mas tinha uma surpresa quando chegámos lá: ‘Têm de trabalhar muito quando querem alguma coisa. Por isso também vão trabalhar pela pizza’”. Resultado: os jogadores meteram – literalmente – a mão na massa para poderem almoçar.

“Esse tipo de estratégias demonstra bem a importância do grupo. Lembro-me que no Boavista também usámos uma fórmula parecida. Antes de um jogo com o Salgueiros, salvo erro, estávamos em estágio, a lanchar, e entraram de surpresa as esposas dos jogadores, que tínhamos mobilizado com a direção para que fossem lá. Foi a mulher do Petit a porta-voz na altura, a dar uma injeção de moral muito grande, explicando que elas abdicavam durante o ano de muito tempo com eles e por isso agora pediam-lhes para darem tudo para chegarem ao título. Felizmente penso que funcionou”, graceja Pacheco.

Tal como Pacheco, Ranieri ressalva a importância do grupo para obter sucesso, mesmo contra todas as probabilidades. “Este é um pequeno clube a mostrar ao mundo o que pode ser conseguido através do trabalho e da dedicação. Acho que a nossa história é importante para os adeptos em todo o mundo e para os jovens jogadores a quem lhes disseram que não eram bons o suficiente”, escreveu.

O efeito positivo é o mesmo em treinadores que, há 15 anos, eram despachados do Chelsea (para a entrada de Mourinho…) sem títulos. E, daqui a um mês, podem voltar a Stamford Bridge e fechar a época 2015/16 com o título no bolso. Não no Chelsea, mas no improvável Leicester, que toda a gente esperava que caísse, em dezembro, em janeiro, em fevereiro, em março… Mas já vamos em abril e só faltam cinco jogos (West Ham, Swansea, Manchester United, Everton e Chelsea) e três vitórias para dizermos adeus ao cinismo. E olá ao maior feito futebolístico das últimas décadas. Jaime Pacheco conclui a questão: “O Leicester ganhou a simpatia de todo o futebol mundial. Que isto sirva de exemplo para todas as equipas: não há impossíveis. Como se vê agora e como se viu com o Boavista. Às vezes, o querer ultrapassa o saber”.

Mariana Cabral (Rede Expresso)

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