Obama acaba de escrever a Putin. Devemos ficar preocupados?

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Obama terá garantido na carta enviada a Putin que pretende um diálogo de alto nível com Moscovo para preservar o tratado de 1987 assinado pelos dois países

“Um sinal de crescendo nas tensões entre Rússia e EUA que não era visto desde o fim da Guerra Fria.” É assim que o investigador do Instituto de Ciências Sociais Bruno Reis classifica a decisão da administração norte-americana de acusar publicamente o Kremlin de ter violado o tratado de controlo de armas de 1987.

O tratado em questão foi assinado pelos presidentes Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev e ficou conhecido pelo nome “Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermédio” (INF, em inglês). Define que nenhuma das duas partes (EUA e União Soviética, à época) pode possuir, produzir ou testar mísseis de cruzeiro com um alcance entre os 500 e os 5000 km.

Altos representantes garantiram ao “New York Times” que o presidente Barack Obama enviou a Vladimir Putin uma carta onde diz que o seu governo concluiu que a Rússia testou um míssil de cruzeiro de alcance intermédio, violando o INF. Obama terá garantido na carta que pretende um diálogo de alto nível com Moscovo para preservar o tratado de 1987.

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O acordo feito entre Reagan e Gorbatchev tem especial importância tendo em conta o contexto em que foi assinado. “Este é visto como o grande marco do desarmamento, não só em termos literais, como em termos simbólicos do desanuviamento das tensões”, explica ao Expresso Bruno Reis. “Isto é de alguma forma pôr a Rússia em cheque ao acusá-la de não respeitar o legado da Guerra Fria.”

Miguel Monjardino, investigador do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, vai ainda mais longe, ao classificar o INF como “uma peça-chave da arquitetura de segurança da União Europeia, que representou a retirada do palco europeu de um certo tipo de armamento polémico” – os mísseis de cruzeiro de alcance intermédio.

O timing

As fontes do jornal norte-americano garantem que os russos têm testado este tipo de mísseis desde 2008 e que a administração de Obama concluiu em 2011 que tais testes constituem uma violação do tratado, algo que o Departamento de Estado partilhou com oficiais russos em maio de 2013.

No entanto, só agora é tornada pública a acusação, muito por culpa do estado das relações entre os dois países. A ideia de ‘reset’ proposta por Obama na diplomacia entre EUA e Rússia já caiu por terra, acentuada pelo que se passa na Ucrânia. “Havia a esperança de que os meios diplomáticos resolvessem as questões”, diz Bruno Reis. “Mas parece que agora, graças à situação da Ucrânia, a estratégia é pressionar Putin.”

Desde a queda do avião MH17 que os EUA têm vindo a acusar a Rússia de estar cada vez mais envolvida na questão ucraniana. No domingo, o governo norte-americano lançou imagens de satélite que provam que teriam sido feitos disparos para território ucraniano da Rússia, o que significa um envolvimento direto do Kremlin no conflito ucraniano – algo que o ministro dos Negócios Estrangeiros do país, Serguei Lavrov, nega. Na noite de segunda-feira surge a notícia do “New York Times”, que garante que os EUA tinham acabado de enviar a carta para o Kremlin, depois de uma conversa telefónica entre o secretário de Estado John Kerry e Lavrov no dia anterior. “Esta confirmação formal – com um papel por escrito e um telefonema de Kerry – é o reconhecimento de que os EUA consideram que a Rússia está a falhar neste consenso [da segurança europeia]”, diz Miguel Monjardino ao Expresso.

Em 2001 ocorreu uma situação semelhante, com os EUA a retirarem-se do tratado ABN (limitação do número de mísseis antibalísticos), mas a situação era outra. “Não só tinha havido duas reuniões entre as duas partes para discutir a possível retirada dos EUA, como a formalização foi feita no pós-11 de setembro. Por isso, os protestos russos não foram muito sonoros. Além disso, as relações entre EUA e Rússia eram muito boas na altura – entretanto tudo mudou”, refere Miguel Monjardino.

O ponto atual é mesmo um dos mais baixos dos últimos anos. Bruno Reis considera que as relações entre os dois países não podem piorar e que, portanto, “já não há recato”.

A reação O Kremlin ainda não reagiu formalmente, mas é possível antever qual será a sua posição. Os russos têm acusado os EUA de também violarem vários tipos de acordos do pós-Guerra Fria e têm levado a cabo uma política de negação das várias acusações que lhes são imputadas. Além disso, como explica Paulo Cunha Dinis, do Observatório Político, desde 2007 que “Putin acusa as instituições ocidentais de se terem aproveitado da fragilidade russa no período pós-soviético, assinando acordos que são desfavoráveis à Rússia”.

Ao jornal britânico “The Guardian”, o analista de Defesa russo Pavel Felgenhauer disse esta terça-feira de manhã que vários governantes russos consideram este tratado “injusto e não adequado à Rússia”, realçando que países como a China, o Paquistão e Israel têm mísseis de alcance intermédio – o que pode levar a crer que a Rússia optará por se colocar de fora do tratado INF, a fim de procurar adquirir este tipo de armamento.

Mas essa não é a crença dos especialistas ouvidos pelo Expresso. Miguel Monjardino realça que a Rússia já tem tentado modernizar o seu arsenal militar de longo alcance; investir agora também no médio alcance seria um investimento altíssimo. “Eu olharia para isto muito mais como uma pressão política de Moscovo.” Ameaçar sair do tratado poderia ser a peça necessária para conseguir uma negociação a alto nível de outro tipo de questões, nomeadamente relacionadas com a Ucrânia e a Geórgia.

A militarização da Ucrânia – através de uma possível entrada na NATO – é o cenário que mais assusta o Kremlin neste momento, razão pela qual Putin pode tentar usar o INF como desculpa para exigir esse tipo de condições e assegurar a segurança das suas fronteiras. Como ilustra Cunha Dinis, “até 1989 a NATO estava a muitos quilómetros de distância da Rússia – agora está aproximadamente a 350.”

A Rússia pode aproveitar a situação para forçar uma negociação a seu favor, mas com a tensão entre os dois países tão alta, os riscos mantêm-se. Monjardino deixa o alerta: “Se a situação sai dos carris, teremos fortes consequências para a segurança europeia”.

RE

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