Obrigado, Rodrigo. Até já

Lembro-me bem de, em 2015, numa daquelas cavaqueiras de fim de tarde à beira de duas bejecas e um pires de tremoços, me teres dito, com aquele tom sentencioso e sério com que por vezes decoravas as frases, que não ias andar por cá mais de cinco anos. Era esse o teu prazo de validade.


Estremeci quando vaticinaste, porque acreditei na sentença. Havia qualquer coisa de esotérico no que dizias, sobretudo na entoação que puseste na frase, como se tivesses todas as certezas do mundo na premonição e fosse impossível não acertares.


Veio agora a certeza ainda mais absoluta de que era certo o presságio. Tu que tanto falhavas em tanto do que predizias podias ter falhado também no mais fatídico dos pressentimentos e dares-nos a alegria de estares connosco mais uns anos. Mas tinhas que estar certo, como já prenunciava o tom da sentença.


A nossa amizade foi mais intensa do que extensa. Condensou-se em poucos anos a convivência estreita que não tivemos durante os muitos anos em que foste apenas um comum colega de trabalho. Víamo-nos nas conferências de Imprensa, bebíamos um café rápido e corríamos para as respetivas redações.

Rodrigo Burnay


As circunstâncias em que a nossa amizade se alicerçou e depois cimentou é bem reveladora de um dos traços incomuns do caráter do homem que foste, que és. Adotaste-me como amigo quando a maioria fugia de mim, nos poucos mas arrastados anos em que os antigos amigos me iam abandonando, a mim a braços com o desemprego, a mim no turbilhão voraz da crise pós 2011. Enquanto outros mudavam de passeio para não terem que aturar as minhas repisadas amarguras e frustrações, tu telefonavas-me e perguntavas como estavam as coisas, davas-me esperanças, apontavas caminhos. E mais do que isso, concretizaste. Furaste vidas para, desinteressadamente, me ajudar e veio de ti e dos teus zelos uma das poucas tarefas profissionais que consegui arrebatar durante a crise em 2015.


Eras assim, generoso, desinteressado, preocupado. Outros davam-me palmadinhas nas costas com complacência e o olho no relógio, tu abrias-me caminho entre a floresta que se fechava.


Daí a criarmos uma teia cúmplice foi um passo de formiga. Os almoços em minha casa prolongavam-se pela tarde, preguiçosamente beberricávamos vinho de copos altos ou, de verão, chupávamos garrafas de 20cl. Foram longas horas ao sol conversando sobre política, a profissão, as empresas, de tudo um pouco.


Lembro-me das tardes de futebol, sobretudo daquela noite em que, no sofá de tua casa, nos abraçámos ruidosamente no golo do Éder, em julho de 2016. E de como fomos para a rua comemorar à volta de duas cervejas.


Recordo com saudade as nossas idas à praia em 2015 e 2016, com o nosso amigo Carlos Cruz. E daquela vez que te perdeste de nós. E de como te recusavas a usar chinelos e sandálias e da tua obsessiva mania de limpares os pés até ao último grão de areia antes de enfiares os sapatinhos de vela.


E sim, lembro-me também das nossas discussões, da maneira como nem sempre estávamos de acordo, do teu liberalismo em oposição ao meu marxismo. Mas de como tudo acabava quase sempre em consenso solidário. Sim, tu foste o mais solidário dos liberais que conheci, dono de um enorme sentido de justiça social e igualdade. Tu eras de esquerda, pá! (como se isso importasse alguma coisa agora).


Sim, essas aparentes incongruências ideológicas não te afetavam, passavas dançando por elas, eram figuras de estilo com que te emolduravas. Eras o que eras e pronto. Um ser afetuoso, dedicado à família (lembras-te quando uma vez descobriste uma barata na cozinha e expulsaste o teu filho de casa, que ele não podia dormir numa casa “com baratas”? E mandaste lá um exército exterminador no dia seguinte, pago a peso de ouro? Tu que mal te chegava para comer?), um profissional obsessivo, cheio de rituais perfecionistas.


Sim, quando te conheci levantavas-te pontualmente às seis e meia da manhã para leres jornais, digerias toda a informação antes de ires trabalhar, às nove. Pré-preparavas o dia de trabalho. Obrigavas-te compulsivamente a fazê-lo. Esse eras tu.

João Prudêncio

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