Odiar é tão fácil!

A mais recente sondagem mensal da empresa de pesquisas brasileira Datafolha, referente a maio, é categórica sobre quem apoia Bolsonaro em função do grau académico de que dispõe: quanto maior esse grau, maior é a reprovação do presidente.

Entre os brasileiros com grau de escolaridade básica, só 36% consideram o governo Bolsonaro ruim ou péssimo, reprovação que sobe para 43% entre quem tem escolaridade média e se torna maioritária (56%) entre quem estudou até ao ensino superior. Na comparação com abril, enquanto na faixa de escolaridade baixa há variações mínimas de 1%, na escolaridade média a alta foi de sete pontos (de 36% para 43%). Já entre quem tem um nível escolaridade superior, o crescimento de chumbos ao presidente foi de nove pontos (de 47% para 56%) em apenas um mês.


Isto é, usando uma expressão bem brasileira, face às políticas e episódios que têm valido a Bolsonaro o epíteto universal de pior presidente do mundo, “a ficha cai” tanto mais repentinamente quanto maior é o nível de instrução e grau académico em causa. Parece haver mais ferramentas intelectuais e mecanismos avaliativos suscetíveis de mudar uma apreciação quando se andou mais tempo na escola e, mais ainda, quando se chegou à Universidade.


Vem esta reflexão a propósito da inusitada saída para a rua da extrema-direita portuguesa, no fim-de-semana que passou.

Quem eram aqueles homens e mulheres (a esmagadora maioria homens), todos brancos, de classe média, que desceram a avenida gritando palavras de ordem vazias como “Por-tu-gal”, falaciosas como “Portugal não é racista”, ou de cariz meramente autoritário como “Respeita a polícia”? Generalizando, do ponto de vista da conceção do mundo, dos níveis percetivos do que é uma sociedade, da consciência da formação histórica e social do mundo em que vivemos, que gente é esta que sai à rua a defender a autoridade policial e escreve no Facebook contra “pretos”, “ciganos” e os “esquerdolas” que os defendem?


Tenho para mim que o nível académico e de instrução de um indivíduo não são, per si, um fator qualitativo de avaliação desses níveis de consciência social de um indivíduo. Vivemos numa sociedade em que a especialização do ensino dita regras e o Homem do Renascimento, de saberes ecléticos e dominador de variadas disciplinas, está cada vez mais longe. Não me parece portanto que, só por si, os “grunhos” e racistas que descem a rua numa tarde quente de sábado para gritar slogans inteligentes como “Por-tu-gal” e ter o privilégio de desfilar ao lado do portento intelectual Maria Vieira tenham falta de instrução académica no sentido estrito, não tenham – nenhuns deles – posto os pés numa universidade, ou não tenham livros em casa.


Parece-me sim que, à esmagadora maioria deles (e haverá sempre exceções), não foi conferido um nível de educação – e verdade que eles também não o procuraram – que os faça ter consciência de um enquadramento social e político suscetível de aceitar o Outro, a Diferença e as ideias solidárias.


Repare-se que não generalizo. Não digo que a esquerda é mais instruída que a direita. Há uma direita culta, como há uma esquerda culta; e há uma direita troglodita e uma esquerda menos culta, até inculta. Boa parte dos recrutamentos de militantes do PCP (de outros partidos também, mas muito mais no PCP) fez-se mais na tradição familiar ideologicamente hereditária do que com base nos livros pró-soviéticos e das autorias de Marx, Engels e Lenine que ganham poeira nas estantes lá de casa.


O que quero dizer é que – com notáveis exceções, de António Ferro a Jaime Nogueira Pinto passando por Miguel Castelo Branco, para só falar de portugueses – a extrema-direita raramente convive com a cultura. Isto quando a cultura é asserida no sentido de conjunto de instrumentos que nos permitem descodificar a complexidade do real e, especialmente, das sociedades complexas em que vivemos nas suas várias vertentes e emaranhados. Não é por acaso que, voltando ao caso brasileiro, num país intelectualmente tão rico como aquele, o guru intelectual de Bolsonaro, Olavo de Carvalho, é um “filósofo” sem curso, residente nos EUA, que nunca pôs os pés numa universidade, se autointitula “astrólogo” e acredita na “teoria” negacionista da Terra Plana.


Por outras palavras, ser de extrema-direita é mais fácil. Aliás, na sociedade em que vivemos, ser de direita, ou liberal, ou conservador, já é mais fácil do que ser de esquerda, seja qual for a esquerda em causa. Basta “aceitar” as regras do capitalismo e do Modus Vivendi em que se instalou a quase totalidade do mundo atual, sejam países ricos ou pobres.


Corporizar o ódio num comportamento íntimo, numa cor de pele, numa etnia, é muito mais fácil ainda. Sim, Hitler prescinde de grandes explicações, no máximo está tudo no “Mein Kampf”, mas principalmente odiar é fácil. Materializar num alvo “próximo” as culpas de algumas frustrações individuais prescinde de grandes complexidades intelectuais.


É injusto, porém fácil, acusar um imigrante, um cigano, um homossexual, um pobre do RSI. Ao contrário, acusar “o capitalismo”, “o imperialismo”, “o sistema neoliberal”, “o colonialismo” implica conhecimento. Histórico, social, económico. E não é aquela história acéfala de odiar o comunismo “porque matou milhões”, ou “nunca deu certo”. Não, ao contrário: o golpe de ancas dos universitários que largaram Bolsonaro no último mês baseou-se em conhecimento, em maior ou menor escala.

Essas ferramentas já estavam lá.

João Prudêncio

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