Chegam-nos essas imagens do Brasil, Bolívia, Colômbia, México. Primeiro, terra atirada para cima de caixões, depois gente chorosa. Muitas vezes falam: pedem que os que restam aprendam a lição, usem máscara, se confinem. Às vezes aparece um pequeno elogio fúnebre.
Não nos chegam imagens dessas de Portugal. Nem da Europa ou dos EUA. O respeito pela dor de quem chora um ente querido impera no mundo desenvolvido. Não há câmaras nos cemitérios do Primeiro Mundo, nem caixões à beira da vala, nem imagens de milhares de covas alinhadas.
As mesmas TV’s que, no mundo desenvolvido, primam pelo respeito da dor alheia, borrifam-se para essa dor quando se trata de mostrar as imagens que recebem do 3º Mundo. Escudam-se no facto de as imagens virem “de fora”, e lhes aparecerem já feitas. Mas exibem-nas, crendo com isso ganhar mais um pouquinho de share em prime-time. E mandando às malvas os valores que respeitam entre fronteiras.
O respeito pela intimidade da morte tem fronteiras, mas também classes sociais: só os pobres choram nas TV’s. Os ricaços brasileiros ou mexicanos têm direito à privacidade de pranto. No Terceiro Mundo, não há câmaras de TV nos cemitérios dos ricos. Mesmo naquela fase primeva da pandemia em que só os ricos da América Latina morriam de covid-19 – os que tinham viajado -, nunca se viu um canto carpideiro à beira de um caixão de mogno.
Este desrespeito classista estende-se a vários contextos. E até com consequências bem mais graves do que a abstrata dignidade humana. Mede-se em fome! Por cá, há já muitas semanas que os feirantes protestam, submergidos por uma crise pandémica que lhes subtrai o pão e sem que tenham qualquer tipo de ajuda. Pagam os seus impostos, as suas taxas municipais e estaduais, mas na hora em que precisam do Estado ele assobia para o ar.
É assim há três meses. Há casos gritantes de faltas básicas e desespero entre os que sobrevivem do negócio nas feiras. Por enquanto, o desconfinamento não lhes assiste, não são centro comercial nem loja da esquina. Não têm direito a lay-off, nem linhas de crédito, nem subsídios a fundo perdido. São pobres que trabalham para pobres. São empresários sem CIP que os represente, grite e seja escutada. A fome mata em silêncio.
No fim-de-semana que passou, foram precisos 60 polícias de capacete, armados de metralhadoras, para fechar oito bares e cafés no bairro da Jamaica. Já sobrevivendo de esmolas e depauperados por mais de dois meses de confinamento forçado, os donos desses bares ficaram mais uma vez sem ganha-pão, agora que, de há dias para cá, começavam timidamente a pôr a cabeça de fora. As televisões não darão em direto a fome que se vai apossar desses agregados durante os 15 dias de fecho suplementar, como deram, horas a fio, a intervenção policial na tarde do passado sábado. Também aqui, a fome mata em silêncio.
Não ponho em causa, no caso dos feirantes, a necessidade de confinamento numa atividade que implica ajuntamentos, embora ao ar livre. Como não ponho em causa, no caso dos negros pobres que ocupam as torres inacabadas do concelho do Seixal, a necessidade de fechar pontos de potenciais ajuntamentos num bairro onde foi detetado um novo foco de infeção.
Está em causa, sim, a dignidade da pessoa humana em face das mais básicas necessidades, abruptamente retiradas, justificadamente ou não.
Sem sindicatos fortes nem associações respeitadas pelo Poder que gritem e se façam ouvir, feirantes, donos de bares miseráveis, mas também as gentes do circo, os agentes da cultura que se faz no limiar da subsistência e da precariedade (como acontece com a maior parte dos artistas e técnicos ligados ao teatro e à música), pessoas sem rosto e sem poder reivindicativo, permanecem na sombra e vivem de esmolas e da solidariedade alheia.
Sim, a pandemia tem pobres e ricos. E é mentirosa aquela asserção de que ela veio provar que, afinal, estamos todos no mesmo barco. É verdade que largos estratos da classe média e mesmo média alta se ressentiram da crise pandémica. Até os muito ricos se ressentiram. Mas ela atingiu sobretudo os que menos alternativas de subsistência têm e menos têm direito a fazer-se ouvir.
O poder despreza quem não tem voz, trate-se de um anónimo num cemitério latino-americano, frente ao poder mediático, seja um palhaço de circo, um dono de bar preto, um vendedor de sapatos na feira, um técnico de som num teatro de província. Nestes como noutros casos (incluindo quem foi despedido e os que estão em casa com 66% do salário), a pandemia não veio igualizar coisa nenhuma. Só acentuou diferenças.
#tudovaificarbem uma ova!
João Prudêncio