Este é o estado de espírito com que me deparo agora: uma página em branco, por escrever. Não falo apenas desta folha que aguarda, pacientemente, pelo escriba, mas, em particular, da minha expectativa face à abertura de portas. Começarei a trabalhar daqui a umas horas e o meu estado de espírito é simultaneamente apreensivo e ansioso.
Há todo um regresso que se prefigura. Tenho pensado muito sobre a questão e o que a mesma significa. Porque regressar é, na verdade, uma ideia um tanto ou quanto armadilhada, por pressupor que iremos retornar a um ponto onde já estivemos. Nada mais longe da verdade. Regressamos diferentes e o mundo a que regressamos é igualmente diverso. Um pouco como quando revemos um amigo com quem já não estamos há vinte anos: nós já não somos a mesma pessoa que dele se despediu na adolescência; e se ele o continua a ser… Temos motivos para nos preocupar! Porque, em essência, o mundo de cada um mudou e nós mudámos com ele, ou mudámo-lo nós. Enfim, divago. O que pretendo dizer, creio, é que um regresso não determina o retorno a um momento passado, volvido.
Na verdade, acho que cada um de nós sabe disso. O sábio Calvin (agora, não cito o teólogo Calvino, mas antes a personagem de banda desenhada que o mesmo inspirou, o miúdo de seis anos, Calvin, criada por Bill Watterson) dirá ao seu amigo tigre Hobbes, a propósito da repetição de momentos nas férias, sentir-se na fase de reposição de programas de TV. Todos nós teremos em parte esse prazer inconfessado: procurar repetir indefinidamente um momento, na esperança que tal repetição nos conforte. É esse o papel das músicas nostalgicamente recantadas, décadas volvidas, em tantas rádios; dos filmes revisitados que a televisão debita ciclicamente (e cujas falas, de tanto ver e rever, sabemos de cor). E é esse o regresso que – secretamente ou não – ansiamos, nesta semana em que terminamos o Estado de Emergência.
O problema, claro, é que, como amargamente sabemos, esse regresso não existirá. O mundo mudou e, mesmo quando esta pandemia se findar ou amenizar, não será de todo o mesmo que o do Verão passado, ou de há cinco anos. Não teremos voos diários, de hora a hora; ruas pejadas de viajantes carregados; restaurantes apinhados de línguas diferentes. Não iremos encontrar gigantescas filas à porta dos restaurantes, hotéis sobrelotados e um mundo que, de parte a parte, se rege de reservas antecipadas.
Mas nós não seremos também os mesmos. A quarentena tem destas coisas… Provavelmente, redescobrimos artes e prazeres. Encontrámos pistas perdidas. Reencontrámo-nos e reencontrámos amigos – não os amigos como tínhamos há vintes anos; antes aqueles que estavam escondidos em qualquer lugar por descobrir. Antes do presente Estado de Emergência, não escrevia há cerca de 10 anos – e, dias fechado em casa, eis-me a escrevinhar ideias com vista a publicação futura.
Regressemos, pois, a um mundo que nos aguarda. A última tira publicada por Bill Watterson, de “Calvin & Hobbes”, reproduz essa mesma ideia: as duas personagens, em cima de um trenó, num cenário nevado, limpo. Um mundo inteiro por descobrir, como sabiamente nos dirá Calvin. É este o espírito que espero ter quando abrir portas.
Vasco Barbosa Prudêncio
Chef de cozinha “A Venda”