Portugal sob suspeita de corrupção na Argentina

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Justiça argentina investiga um esquema de corrupção ao mais alto nível com empresas portuguesas do setor do transporte ferroviário. Contratos com a CP estão sob suspeita.

A Justiça argentina está a investigar o suposto envolvimento de empresas portuguesas da área dos transportes num esquema de corrupção. As investigações giram em torno de Ricardo Jaime, secretário de Transportes da Argentina entre 2003 e 2009, suspeito de enriquecimento ilícito, com quem empresas portuguesas do setor ferroviário (públicas e privadas) fecharam negócios, ao abrigo de acordos entre os Estados português e argentino.

Ricardo Jaime era o braço-direito do ex-Presidente Néstor Kirchner (2003-2007), que faleceu há um mês. Permaneceu no cargo até ao ano passado, durante, inclusive, metade do mandato da atual Presidente, Cristina Kirchner, esposa de Néstor.

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Jaime renunciou ao cargo pressionado pelas dezenas de denúncias de corrupção, superfaturação e apropriação ilegal de fundos. Portugal fechou acordos com Ricardo Jaime três meses antes deste ter renunciado ao cargo, numa altura em que as denúncias se multiplicavam.

26 mil emails sob investigação

As investigações ganharam força nos últimos dias, expondo empresários que, por estas horas, temem ver os seus nomes associados ao escândalo. A Justiça argentina apreendeu 11 computadores com cerca de 26 mil emails e documentos de um consultor pessoal de Ricardo Jaime. O consultor, Manuel Vázquez, mantinha uma estreita ligação com empresários.

Seria ele o encarregado do “trabalho sujo” que incluía operações de superfaturação, subornos, criação de sociedades-fantasma, contratos milionários, tráfico de influências, recolhas ilegais de fundos de campanha e favores irregulares, sobretudo nas áreas aeronáutica e ferroviária.

Era Manuel Vázquez quem cobrava as “comissões”e distribuía o dinheiro “aos amigos” (como ele dizia), tanto do Governo como privados. Para que o esquema parecesse legal, a empresa de Manuel Vázquez emitia uma fatura sobre supostos trabalhos de consultoria ou de assessoria, que esconderiam, no fundo, intermediações e o trabalho de testa de ferro do ex-secretário e do Governo.

Comissões são “custos políticos”

Nos emails aparecem contas bancárias em lugares insólitos, nomes de membros do Governo, sindicalistas e empresários. As referências a “Presidente”, “O número 1” e a “El Jefe (O Chefe)” parecem visar o ex-Presidente Néstor Kirchner. Nos diálogos, aparecem ainda expressões como “milhões para a gangue”, “presente para os nossos”, “sobrariam uns 700 mil que temos que avaliar como usar melhor” e “Só Deus sabe como vão explicar isto”.

Nas compras de material ferroviário de Espanha, os funcionários e empresários espanhóis designam as comissões-extra de “custos políticos”.

A companhia aérea chilena LAN, por exemplo, pagou uma comissão de 1,15 milhões de dólares a Manuel Vázquez. Formalmente, pagou assessoria em tráfego aéreo, embora o consultor nunca tenha trabalhado nesta área. Os pagamentos foram feitos entre 2006 e 2007, logo após o ex-secretário dos Transportes autorizar a empresa a voar na Argentina, um objetivo perseguido pela LAN durante anos.

O atual Presidente do Chile, Sebastián Piñera, era um dos donos da companhia aérea com 26% das ações.

Suspeitas chegam a Portugal

Manuel Vázquez e os seus consultores em Espanha ou em Portugal ficavam com uma comissão entre 7,5 e 10%. O resto era entregue ao ex-secretário, que, por sua vez, dava o dinheiro – não sem antes ficar com a sua parte – para a campanha eleitoral coordenada pelo ex-Presidente Néstor Kirchner para eleger a sua esposa, tanto em 2005 (para senadora) como em 2007 (para Presidente).

As suspeitas envolvendo Portugal começam a aparecer. Uma empresa portuguesa – SDV (Portugal) Transitários Ltd. – pagou 318 mil euros em comissões para esse “consultor” supostamente nacionalizar material ferroviário da CP, em 2007. A fatura, à qual o Expresso teve acesso, é uma das muitas investigadas pela Justiça da Argentina. O dinheiro foi para uma conta do Bank of América em Nova Iorque.

A um dos amigos, o português Jorge do Amaral, Manuel Vázquez escreve sobre a transação no dia 19 de Julho de 2005, sob o título “Material Circulante Portugal 30% proposta”: “Caro Jorge, aos 27,312 milhões de euros deveríamos acrescentar o custo de ao redor de 1,350 milhão (de euros) para dividir”.

O empresário português Jorge do Amaral foi presidente da Câmara de Comércio Argentino-Portuguesa entre 2001 e 2008, num período que coincidiu com a gestão do ex-secretário Ricardo Jaime. Eram amigos e tratavam-se com afeto. Jorge do Amaral empenhava-se em trazer investimentos portugueses à Argentina e apresentava-os a Ricardo Jaime com ligação direta com o Presidente Néstor Kirchner.

CP vende material antigo

O email refere-se ao primeiro contrato da CP ao abrigo de um grande acordo entre Estados, que evita a necessidade de licitações e de intermediários. A partir desse acordo em 2003, a CP começou a vender material circulante. O primeiro acordo ao qual se refere o email ascendia a 27 milhões de euros em locomotivas, triplas, vagões e carruagens.

Em 2009, assinou um novo contrato por mais 21 milhões de euros e abriu a perspetiva de fornecimento de outros 30 milhões de euros até 2011. No total, 78 milhões de euros em materiais com 10 a 20 anos de antiguidade. Cerca de 70% desse material ferroviário apodrece sem uso na Argentina. Tudo agora está sob a lupa da Justiça do país sul-americano.

“Portugal ganha porque renova a sua frota ferroviária, ao mesmo tempo que confere valor económico a um material mais antigo. Também geramos emprego e atividade económica para o fabrico de novos materiais. A Argentina recebe um excelente material, com qualidade e garantia a um custo mais baixo”, explicou ao Expresso, em abril do ano passado, a então secretária de Estado dos Transportes, Ana Paula Vitorino.

Manuel Vázques cobra… e explica

Num email sobre uma compra de material ferroviário semelhante de Espanha, a 29 de julho de 2005, o consultor Manuel Vázquez explica ao seu sócio em Espanha sobre como “esconder” os custos de uma fatura. “Desmantelamento do material: um milhão de euros (de acordo com gente que entende muito deste assunto o custo não passa de 400 mil euros); materiais e assistência técnica: dez milhões de euros (nunca se falou de mais de sete milhões e meio); os restantes 1,611 milhão (SÓ DEUS SABE COMO EXPLICARÃO)”, descreve Manuel Vázquez no seu manual de superfaturação.

O intermediário espanhol opina que “é uma vergonha que os políticos argentinos peçam dinheiro e, depois, posem de dignos e que uma coisa assim o poderá levar à prisão, devido ao recente artigo do Código Penal Espanhol (445) que castiga quem pagar irregularmente a funcionários públicos estrangeiros”.

Tudo acontecia apesar do papel de Manuel Vázquez ser incompatível com a Lei de Ética Pública. A Secretaria de Transportes argentina era uma verdadeira caixa-forte de recolha e distribuição de fundos. Por ano, distribuía 1000 milhões de dólares sem controlo nem critérios de transparência. O dinheiro era usado para disciplinar empresários.

Márcio Resende, em Buenos Aires /Rede Expresso

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