Reportagem Exclusiva: Quando a horta chega à cidade

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São já largas centenas, em duas dezenas de cidades e vilas algarvias. Gente que, nos interstícios que sobram do espaço urbano em que vivem, cultiva o seu próprio sustento de forma saudável e sem químicos e faz de ser hortelão uma alegria quotidiana e uma forma de vida que vai muito além da simples poupança. Uma forma de vida que chegou ao Algarve há não mais de duas décadas. O JA foi falar com eles e com quem conhece as suas características, motivações e paixões

Por estes dias a seca anda a dar cabo da entretenga de Marcelino Ruivinho, 65 anos, que não esconde o desalento de por aquelas hortas não passar água que se veja, com fartura, como nos tempos em que ali chegou, no terreno à beira da passagem de nível, paredes meias com a malha urbana de Vila Real de Santo António, a oeste da cidade.

Não só da entretenga dele. Também da dos demais agricultores do lugar, algumas dezenas que sobraram da debandada, acossados pela seca mas também pela avaria das duas bombas dispersoras do lugar, no alto do sítio das Hortas, quase paredes meias com essas outras hortas gigantes e sofisticadas da grande distribuição citadina que dão pelo nome de supermercados.

Marcelino confessa que não demanda as centrais de consumo ali ao lado, Pingo Doce e Continente: o pequeno talhão de 25×6 metros (150 metros quadrados) chega e sobra para as necessidades do casal. Alho francês, bróculos, couve, alface, tomate, limão, favas, cebolas (rouxas e das outras). Uma miríade de produtos hortícolas que a terra, mesmo seca, lhe oferece todo o ano. A ele a às dezenas de homens e mulheres que sobraram dos primevos 54 talhões sulcados na terra há sete anos atrás, com o beneplácito da câmara e a supervisão da empresa municipal SGU (Sociedade de Gestão Urbana).

Daquela empresa municipal fundada pelo ex-presidente de câmara Luís Gomes, o antigo pedreiro da autarquia reformado há quatro anos espera pouco mais do que o arranjo das bombas que impedem a chegada da água às culturas através da canalização subterrânea: “Deviam dar força àqueles motores para regar com o chuveiro. Como é possível haver dois motores avariados? Tinha que ter um motor a empurrar para o tanque e outro a empurrar para a rede”, detalha o sexagenário, farto de rondar as plantas de regador em punho, que a água não chega com competência aos aspersores. Queixoso também de que a mesma empresa – com fim à vista, de acordo com os planos do atual edil do concelho, Álvaro Araújo, recentemente eleito – não force os agricultores faltosos a cumprirem as suas obrigações.

Sim, porque nem só a SGU tem culpas no cartório. Algumas delas podem assacar-se aos vizinhos de talhão de Marcelino: “A luz devia ser paga por todos, mas uns pagam, outros não pagam, isto assim já não é comunitário. Só pagam uns 20. E os que não pagam são os que reclamam mais!”, indigna-se, contabilizando em 7,5 euros quantia que paga pela força elétrica que permite o funcionamento da única bomba do lugar em condições.

O sentido de comunidade

Mas vêm um pouco de mais longe as hortas partilhadas que hoje estão disseminadas um pouco por todo o Algarve: começaram a aparecer já no início do século XXI, ainda que tenha sido na última década que esta tendência chamou a atenção das autarquias e ganhou mais adeptos entre os amantes da agricultura de proximidade.

Atualmente, segundo a Direção Regional de Agricultura e Pescas (DRAP) algarvia, existem perto de duas dezenas de hortas urbanas na região, onde é possível praticar o autoconsumo. A procura nos últimos anos tem sido tanta que, em muitas delas – como no sítio das Hortas, em VRSA – há listas de espera para concorrer aos talhões.

António Marreiros, 62 anos, engenheiro agrícola e técnico superior na DRAP, explica à reportagem do JA que ainda não existe uma nomenclatura oficial que possa representar os conceitos e todas funções que estão por detrás destas hortas. “Hortas urbanas”, “hortas sociais”, “hortas comunitárias”, “hortas familiares”, “hortas solidárias” ou “hortas coletivas” são algumas das terminologias adotadas num campo lexical com “a poeira ainda no ar”, nas palavras do técnico.

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Terminologias à parte, quando se fala em hortas urbanas, sociais, comunitárias, familiares, solidárias ou coletivas, a dinâmica é sempre a mesma: o autoconsumo ou o consumo partilhado (no caso dos espaços destinados a escolas ou associações). Nestes espaços partilhados não existe a venda de produtos, mas sim uma permuta de experiências, histórias, tradições, conhecimentos e de alimentos. Para António Marreiros, estes são “locais de boas práticas”, que vão muito para além da produção de alimentos. Nestas hortas, para além de alimentos, é cultivado o sentido de comunidade.

O crescimento da população e dos centros urbanos, a dependência do abastecimento de produtos alimentares que atravessam meio mundo para chegar às nossas mesas e as preocupações ambientais alavancaram a necessidade de voltar à terra, às origens e de meter mãos à obra para construir os alicerces de uma alimentação mais sustentável através do autoconsumo. Neste sentido, as hortas urbanas surgem como uma alternativa à agricultura convencional e são tidas como uma solução para o consumo desenfreado e para o desperdício alimentar.

Algarve

Benefícios das hortas urbanas

O autoconsumo é uma mais-valia na economia familiar, o que constitui, por si só, um amparo ao rendimento de qualquer família, que deixa de estar (tão) dependente do grande comércio; Quem cultiva estas hortas, o hortelão, sabe o que come e tem a vantagem de assistir ao crescimento das suas culturas, o que acaba por ser um processo único e especial; A redução surge a compostagem de resíduos orgânicos, também feita na própria horta. A implementação destes projetos torna possível a regeneração e a revitalização dos solos abandonados das cidade, mas não só. Esta é também uma forma de ordenar o território urbano, tornando-o rentável e harmonioso à vista. Normalmente são as entidades gestoras, ou seja, as autarquias, que definem os talhões nas hortas coletivas. As parcelas de terra podem ir dos 20m2 aos 40m2 e por aí fora.

António Marreiro é defensor de que estes espaços devem ser, por norma, esquematizados de raiz por arquitetos paisagísticos de forma a assegurar uma função que não deve ser menosprezada: a função estética. Depois da cedência dos terrenos, delimitam-se os espaços, preparam-se as infraestruturas de rega e apoio aos hortelãos e definem-se os talhões, que são posteriormente atribuídos segundo os regulamentos dos municípios, com prazos de candidatura também definidos pelas autarquias. A partir daí, e depois de assegurada a formação aos hortelãos, há que pôr as mãos à obra. Parte dos projetos ainda são de cariz solidário A maioria das hortas sociais encontram-se sob gestão municipal. Os regulamentos das câmaras definem quem são as pessoas a que as hortas se destinam, pelo que a atribuição dos talhões é uma decisão dos municípios. Desde que o regulamento o permita, toda a gente pode ter um talhão, ainda que as autarquias privilegiem as famílias carenciadas. Apesar disto, António Marreiros defende que as hortas não são apenas para determinados estratos da população. Na sua visão, democratizar o acesso a estes espaços de autoconsumo “é o caminho”, isto porque é uma “ideia errada” associar estas hortas a um “gueto” e a franjas mais marginais da sociedade. “As hortas são espaços para pessoas com capacidades financeiras, com baixos rendimentos, com mais ou menos formação da pegada ecológica e as preocupações ambientais são uma forte atração a estes modelos partilhados de sustentabilidade agrícola, onde até é possível fazer o aproveitamento da água da chuva; A conservação da biodiversidade local é outro dos benefícios elencados à existência destes espaços, onde é dada prioridade às variedade tradicionais, ao invés dos híbridos comerciais que encontramos nos supermercados.

Aqui o objetivo, segundo António Marreiros, é “preservar as culturas que os nossos avós já semeavam”, pois, associada a cada cultura há toda uma tradição gastronómica que desencadeia a partilha de ideias de confeção entre os hortelãos, sempre com base na Dieta Mediterrânica; As hortas urbanas são também espaços de coesão e de integração social. Na visão de António Marreiros, cada horta deve ser representativa da cidade ou da local onde está inserida, pois acaba por ser “uma representação, a uma pequena escala, dos cidadãos daquela cidade”, daí ser também apologista da ideia de plantar e explorar, nestes espaços, culturas originárias de outros países e que representem as inúmeras comunidades de emigrantes que temos no Algarve; O trabalho nas hortas é um passatempo (literalmente produtivo), mas também é uma terapia, um escape, uma forma de aliviar o stress e aumentar a atividade física. Como nos diz António, “duas ou três horas nas hortas é como ir ao ginásio, ou melhor”, brinca. O convívio intergeracional é uma realidade nas hortas. Na terra é possível alinhar esforços e juntar o conhecimento dos mais velhos à destreza física dos mais novos, para uma simbiose perfeita.

Princípios da agricultura biológica

As hortas urbanas são espaços que, na visão de António Marreiros, apenas podem ser implementados e perpetuados segundo as regras da agricultura biológica, ou seja, sem a aplicação de produtos químicos nem de adubos. A fertiliza académica, para jovens, para pessoas de meia idade, desempregados, empregados, profissões liberais, empresários…”, pelo que é importante desmistificar a ideia de que estas hortas estão apenas ao dispor das famílias mais carenciadas. Na sua opinião é vital priorizar a vertente social, mas sem que isso defina o conceito em si. A DRAP tem a colaboração com três hortas. A primeira é com o Banco Alimentar do Algarve, situada nos arredores de Faro, na localidade de Patacão. Depois, no Centro de Experimentação Hortofrutícola do Patacão, numa parceria com a Câmara Municipal de Faro vai nascer brevemente um novo espaço que vai começar a ser delineado durante “as próximas semanas e vai estar a operacional no segundo semestre de 20222, de acordo com António Marreiros. Já em Tavira, é no Centro de Experimentação Agrária (CEAT) que se desenrola o projeto Semente, dirigido pela In Loco e apoiado pela DRP, pela Câmara Municipal de Tavira, pelos Cidadãos pelo CEAT e Hortas Urbanas de Tavira, UAlg e outras associações públicas e privadas.

Tavira, onde tudo está no começo

Este último projeto é um dos mais recentes na região e um dos mais abrangentes. Implica a criação de duas hortas urbanas, dentro da cidade com objetivos comunitários, isto é, “o objetivo que temos é o de envolver as pessoas dos cinco bairros de Tavira num processo de capacitação e mobilização para eles depois ficarem responsáveis por talhões e produzirem uma parte da sua alimentação e melhorarem a sua qualidade de vida e independência alimentar com as suas próprias mãos, com as competências que adquiriram entretanto”, explicou ao JA o coordenador do projeto por parte da associação In Loco, Artur Gregório, 60 anos.

“Pretendemos aumentar a autodeterminação alimentar dos habitantes dos cinco bairros, torná-los mais independentes. Passarmos de uma perspetiva assistencialista, de dar coisas às pessoas, para capacitar as pessoas para elas produzirem o que consomem. ‘Ensinar a pescar’. As pessoas ficam autónomas e melhoram a sua qualidade de vida com o seu próprio esforço”, explica o dirigente da associação de desenvolvimento local. Com formação a empreender na horta do CEAT – uma das duas em fase de implementação -, que assim servirá também de escola, o projeto está, no dizer de Artur Gregório, “de pé no acelerador” e as inscrições deverão encerrar já na última semana de março. “No último fim de semana de fevereiro já queremos ir delinear os talhões, pôr as vedações”.

Produtos biológicos para vida saudável

Contudo, ao contrário do que encontrámos em VRSA, ali não haverá arames nem vedações de madeira: “Só a horta é que é vedada, pois os talhões são separados uns dos outros pelos caminhos de acesso e por plantas. Também trabalhamos as questões da cooperação, da interajuda, queremos ajudar a criar um grupo de pessoas que se ajudam e apoiam. Um espírito de comunidade. Já visitámos algumas destas hortas e é interessante como isto resulta muito bem. As pessoas que têm estes talhões passado pouco tempo ficam de tal maneira envolvidas e motivadas que levam aquilo muito a sério”, salienta o dirigente da In Loco, para quem o conceito “serve para descomprimir a pressão do dia a dia, relaxar, é uma terapia”.

Com cerca de 40 metros quadrados cada um, os futuros ocupantes terão que respeitar princípios como a sociabilidade, a poupança dos recursos hídricos e a identidade mediterrânica. “Vamos usar os princípios da dieta mediterrânica, utilizar espécies locais e plantá-las na altura certa. Vamos plantar aquelas plantas do Mediterrâneo. Que não precisam de muita água, que dão produtos saudáveis e saborosos. A lógica não é a da agricultura intensiva e monocultura, é a lógica da policultura. Principalmente hortícolas, como alface, couve, legumes, leguminosas”, explica.

Dos 50 candidatos a selecionar, o projeto já tem 43 pretendentes. “Ainda não sabemos se todos os 43 cumprem os requisitos ou se estão todos interessados”, ressalva Artur Gregório.

A seleção final será feita numa entrevista para aferir da motivação das pessoas, se corresponde às suas expetativas. “Convém que as pessoas assumam isto com motivação, porque com responsabilização. Nós assumimos a organização e as pessoas têm que assumir a determinação e a vontade”.

As motivações mais comuns dos candidatos são “muito no sentido de algo que lhes dê satisfação e seja diferente. E muito também o poder trabalhar numa alimentação melhor. Controlar a qualidade dos alimentos, que são saudáveis. São produzidos sem pesticidas, sem herbicidas, saborosos e saudáveis”.

Outro dos requisitos a exigir, que como já vimos também se encontram noutras hortas, é que se produzam exclusivamente alimentos biológicos. “Poderemos usar outras formas de agroecologia (permacultura, agricultura regenerativa), porque o objetivo é também melhorar o ambiente”, explica, sublinhando que o controloé feito através de um tutor, já contratado, que apoia os hortelãos mas verifica também se tudo está a ser feito como deve ser”.

Sobre o “retrato-robot” do candidato, Gregório assevera que há muitas motivações e perfis diferentes. “Temos desde gente jovem que quer fazer isto por motivos ideológicos, vegans, vegetarianos, mas também há pessoas que o fazem por dificuldades económicas e os alimentos são caros e de má qualidade e assim têm possibilidade de produzir e melhorar a qualidade do que comem e só com o seu trabalho”.

E estes últimos, vaticina, são talvez a maioria deles!

João Prudêncio e Joana Pinheiro Rodrigues

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