Querem afundar a Cidade Lacustre

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Demorará oito anos a construir mas está a levar já quase 60 a sair do papel. Esta semana
mais um passo foi dado antes da primeira pedra: acabou a consulta pública da Cidade Lacustre
de Vilamoura. O JA explica a fase atual do projeto e falou com os críticos, que querem afundá-lo
antes mesmo de emergir

Terminou com apenas cerca de meia centena de participações, esta segunda-feira dia 9, o período de consulta pública do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da 2ª fase da Cidade Lacustre de Vilamoura. Um número que um responsável do movimento de cidadãos que contesta o projeto considera “escasso”.
Às 49 participações contabilizadas no portal Participa deverão juntar-se algumas outras enviadas por correio ou e-mail, entre as quais a da própria associação ambientalista Almargem, que enviou por correio eletrónico, segundo confirmou ao JA fonte da organização.


Nesta consulta estava em causa a parte habitacional do projeto, depois de a 1ª fase se ater à construção das quatro lagoas artificiais e respetiva envolvente hídrica.
O resultado da consulta pública será agora objeto de um relatório a integrar no parecer final da comissão de avaliação do estudo de impacte ambiental, a submeter a decisão da autoridade de avaliação de impacte am-biental, a CCDR do Algarve, disse ao JA fonte daquela entidade, que considerou “normal” o ambiente em torno deste período de consulta pública, que decorria desde 29 de julho.

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A construção da Cidade Lacustre de Vilamoura implica um investimento de cerca de 670 milhões de euros e prevê a criação de um total de 937 postos de trabalho diretos numa área de 57,4 hectares, junto à Marina de Vilamoura e à praia da Rocha Baixinha, com 74 lotes edificáveis. Prevê a construção de 834 unidades de alojamento e de 1150 novos fogos, num total de 2506 camas turísticas.
No coração do projeto estarão quatro lagos artificiais, que que vão servir as seis zonas da Cidade Lacustre: a Vila (área destinada a residências, com comércio, serviços e restaurantes), a Ilha (coração da cidade destinada ao turismo), a Baía (de carácter residencial mais familiar), a Duna (de uso misto, residencial e turístico), o Oásis (para turismo) e o Belvedere (só residencial).

Um projeto “velho” de quase 60 anos
“O processo de construção dos edifícios decorrerá previsivelmente durante mais de oito anos”, de acordo com os documentos apresentados pelo promotor do projeto, a Vilamoura Lusotor, SA. Haverá três núcleos turísticos distintos, o principal dos quais se designa “A Ilha”, onde se concentrarão os serviços e comércio.
A Cidade Lacustre de Vilamoura projeta a construção de um conjunto de lagos alimentados pela água do mar e interligados por canais navegáveis pelas embarcações turísticas e dos residentes. Um sistema de renovação da água dos lagos evitará a deterioração das águas.
O projeto implica o desvio do Vale Tisnado, o desassoreamento da foz da Ribeira da Quarteira e a construção de um dique de proteção contra cheias, ao longo de 1998 metros de comprimento e apresentando uma variação entre os 15 e os 170 metros de largura.

A operação de loteamento envolve ainda as ruínas romanas do Cerro da Vila, estando programada a formalização da sua cedência ao município de Loulé.
O projeto já vem da década de 60 do século passado e foi passando por várias vicissitudes e alterações, sempre contestado pelos ambientalistas e vários setores da população.
Recentemente formou-se o grupo Pela Ribeira de Quarteira – Contra a Cidade Lacustre, com alguma visibilidade no Facebook, que assumiu a tarefa de espalhar a mensagem crítica dos projetos em desenvolvimento e elaborou um documento que pediu aos apoiantes de replicassem e enviassem à CCDR/Algarve durante a fase de consulta pública.


O receio da contaminação das águas
“Estamos a falar de trazer milhares de pessoas para dentro de Vilamoura, adicionando uma pressão de que a vila já não precisa. E não são só elas, tudo o que isso implica, empregados de hotéis, jardineiros, todo o tipo de estruturas. Ambientalmente aquilo é uma desgraça”, resumia esta semana ao JA um dos líderes daquele movimento, Rui Amores.
Para o advogado e ambientalista, o projeto mexe com uma zona ambientalmente muito sensível, protegida por convenções internacionais, uma zona húmida, e implica a artificialização de uma zona natural, “ao construir lagos que não existem e que vão eventualmente prejudicar os aquíferos”.
O projeto prevê a impermeabilização dos quatro lagos e respetivos canais, de forma a não contaminar com água salgada os dois aquíferos que lhes passam por baixo, nos 100 hectares previstos para o projeto.

Mas os contestatários receiam a eficácia dessa impermeabilização: “Receamos que não seja suficiente essa impermeabilização e haja alguma ruptura e uma contaminação da água doce dos aquíferos”, explicita Anabela Santos, da Almargem, movimento ambientalista algarvio que também se assume na liderança da contestação.
O grupo contra a Cidade Lacustre sustenta que o projeto é feito com base em legislação de 2007 e que só isso permite, nomeadamente, a construção em cima de água: “ Hoje em dia, se o mesmo projeto fosse submetido, já não seria permitido. Este projeto só foi feito como foi porque teve como base legislação que ainda vigora para planos que entretanto se iniciaram”, sustenta o advogado daquele grupo.

6000 metros cúbicos por dia
Os contestatários invocam também a componente hídrica do projeto, ao nível dos gastos de água, como altamente prejudicial para aquela zona do Algarve: “O que mais me chocou neste projeto é a quantidade de água necessária para manter isto. Estamos a falar de mais de 6000 metros cúbicos de água por dia. Vamos entrar em seca, os aquíferos estão em baixo e estamos a acrescentar pressão hidrológica a uma zona que não precisa dela para nada”, observa Rui Amores.
A futura Cidade Lacustre terá campo de golfe, piscinas e jardins em abundância, habituais sorvedouros de água, lembram os ambientalistas.

O projeto prevê o aproveitamento futuro de águas de uma ETAR, através de uma central a construir, mas Rui Amores remete o plano para “uma promessa futura, que nada garante que vá acontecer”.
Os críticos sublinham que o projeto destruirá um dos maiores caniçais do País, pondo em risco a nidificação de aves com estatuto de proteção. De resto, no próprio Estudo de Impacte Ambiental (EIA), reconhece-se que o projeto nascerá numa “área qualificada como sensível”: a bacia hidiográfica da ribeira de Quarteira.


O terreno apresenta “uma diversidade florística e de vegetação elevada”. O que não iumpede que esteja previsto construir um loteamento numa IBA – Important Bird and Bio-diversity Area (Área Importante para as Aves e Biodiversidade, em português).
Nesta zona, há nove espécies de aves classificadas como vulneráveis: garçote, frisada, águia-sapeira, tarta-ranhão-cinzento, falcão-peregrino, camão, alcaravão, perdiz-do-mar e maçarico-das-rochas. Outras quatro estão classificadas como correndo perigo: goraz, garça-vermelha, água-pesqueira e águia-caçadeira.

A importância de um PIN “espetado” num projecto
Graças à sua classificação como Projeto de Potencial Interesse Nacional (PIN), que data de 2008, à Cidade Lacustre de Vilamoura foi concedida a hipótese de não cumprir vários instrumentos de ordenamento, como o respeito pela Reserva Agrícola Nacional (RAN) e a Reserva Ecológica Nacional (REN). Passados 10 anos, em 2018, o PIN foi renovado.
Para Anabela Santos, “o PIN abre as portas quase a tudo, nomeadamente a construção numa mancha de terreno de RAN”.

Também invocando o demérito do PIN, Rui Amores secunda: “É um PIN. É só por isso que ainda está vivo, porque senão nunca passaria do papel”, afirma, sustentando que “estamos a trabalhar em 2019 com instrumentos de planeamento feitos há 20 anos e isso é fatal em matéria de ambiente”.
Sempre classificado em regime de exceção pelos vários governos, o projeto da Cidade Lacustre já era anunciada no plano inicial de Vilamoura, na década de 1960. Chamavam-lhe “a nova cidade” e estava prevista para o que resta do antigo Morgado da Quinta de Quarteira.

Porém, nunca chegaria a sair do papel, até que, em 1994, a sua situação de impasse viria a ser “resolvida” por mão de um despacho conjunto proferido por dois ministérios que representavam então o Governo do Estado Português.1
O despacho de exceção, assinado mesmo antes do último governo de Cavaco Silva cessar funções, permitia assim que, este e mais outros projectos – Vale de Lobo III e Verdelago – fossem avaliados, apesar de contrariarem as regras do ordenamento em vigor, nomeadamente o Plano Regional de Ordenamento do Território do Algarve (PROTAL), aprovado em 1991, mas também as Reservas Agrícola e Ecológica Nacionais (RAN e REN).

Em 2004, o Governo de Durão Barroso criaria nova exceção ao projeto, entretanto formalizado no PDM de Loulé – em 1995, agora sob a forma de “Projecto Estruturante”, o qual viria a ser recuperado em 2005, no âmbito dos PIN (Projeto de Interesse Nacional).
O novo esquema prometia agilizar a análise e aprovação de projetos, promovendo a superação de bloqueios administrativos e garantindo uma resposta célere, nomeadamente em matéria de licenciamento.

Um EIA apenas para “cumprir calendário”
Já com os novos donos de Vilamoura, a Cidade Lacustre viria a tomar forma definitiva em 2009, com a emissão da primeira Declaração de Impacte Ambiental (DIA) favorável, a qual dizia então respeito apenas à avaliação dos chamados “Lagos e Infraestruturas da Cidade Lacustre de Vilamoura”, e que seria prorrogada por duas vezes.
Mais tarde, em 2017, foi também divulgada a Decisão de Conformidade Ambiental do Projeto de Execução, com veredicto favorável condicionado, tal como a Declaração de Impacto referente ao projeto dos lagos. De fora ficou toda a componente imobiliária do projeto.
É essa segunda componente que agora é objeto de Estudo de Impacto Ambiental e respetiva consulta pública. A divisão é contestada pelos ambientalistas: “Como podemos avaliar uma coisa sepa-rada quando ela é um todo e não se podem avaliar os impactos separadamente?”, ques-tiona a líder da Almargem.

Em comunicado enviado ao JA, que assinala o fim da consulta pública, a Almargem lamenta que, volvidos 10 anos sobre o início do processo de avaliações ambientais, e “com o projeto mais que aprovado, e apenas para cumprir calendário”, seja agora retomado com a avaliação de impacte ambiental do Loteamento e Obras de Urbanização da Cidade Lacustre, “num projeto entretanto recauchutado”.
A Almargem considera que se trata do “epitáfio da história de um anúncio há muito conhecido – um dos maiores atentados cometidos sobre o ambiente no Algarve – que irá aterrar (ou melhor, afundar) o pouco que resta daquela que foi outrora a maior propriedade agrícola do Algarve”.
“Não deixa por isso de ser irónico que o concelho que travou recentemente (e bem) o avanço de um projeto ali bem próximo, em Quarteira, com o argumento dos efeitos das alterações climáticas, nomeadamente a subida do nível do mar, seja o mesmo que permita agora aprovar um outro que vai inundar parte do seu litoral… com água do mar”, observa a nota.

Quem vai chumbar? CCDR, Câmara, ou nenhuma delas?
“Como é que as mesmas entidades que hoje fazem projetos para as alterações climáticas amanhã aprovam projetos deste tipo?”, reforça a bióloga Anabela Santos em conversa com o JA, mostrando-se esperançada em que que o presidente da Câmara de Loulé, Vítor Aleixo, tenha “coragem para chumbar os projetos de urbani-zação, ele que chumbou dois projetos recentemente, em Quarteira”.
Lamenta que haja “pessoas que ainda acreditam que estes projetos vão trazer imenso emprego para a região. Não é verdade. Há uma enorme falta de mão-de-obra na hotelaria. O retorno de emprego não é tão grande”. E manifesta-se esperançosa que o município não sufrague aqueles argumentos, ainda que a CCDR/Algarve venha a dar parecer positivo ao projeto.

Já Rui Amores discorda do otimismo da bióloga da Almargem: “A Câmara de Loulé não se tem oposto ao projeto e tem vindo a concordar com ele. E tem aqui uma posição complicada: é sócia da Lusotur na Inframoura, empresa municipal que faz toda a gestão dos espaços verdes de Vilamoura. A Câmara tem 51%, 49% são da Lusotur. O que vamos ter aqui é uma sócia a decidir sobre coisas da outra sócia. A Câmara de Loulé invoca sempre o PIN, despacho de um secretário de Estado que nada tem a ver com a Câmara”.

Na antecâmara da decisão autárquica, Rui Amores deposita as suas esperanças na CCDR/Algarve, entidade que se “tem andado a portar bem, recentemente chumbou o impacto ambiental de um projeto que era dado como garantido, o P11, em Lagoa, do Luís Filipe Vieira, que passou para o BES”.
Além da componente ambiental, os críticos contestam também os danos do ponto de vista arqueológico: “Temos ali uma zona que é classificada como imóvel de interesse nacional. O Cerro da Vila, conjunto de ruinas romanas cujo processo de escavação arqueológica a Lusotur travou, porque não havia interesse, uma vez que a cidade lacustre vai cair em cima desse património”, acusa Rui Amores.
Contudo, do ponto de vista arqueológico, o EIA garante que o Cerro da Vila não sofrerá qualquer intervenção. Além disso, revela que será criada uma Área de Reserva Arqueológica numa zona, interdita à construção de loteamentos, onde foram encontrados vestígios.
O JA tentou chegar à fala sobre o assunto com o Presidente da Câmara de Loulé, que não respondeu à nossa solicitação.

João Prudêncio

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