Remate certeiro

Morreu Jorge Coelho. Apagou-se uma das mais respeitadas vozes da democracia

É quando desaparecem figuras memoráveis como as de Jorge Coelho, que cada vez que falava, a democracia continuava na rua, que nos vem à memória esta fornalha de aviário, que sem fazer nada, que nos calhou em raspadinha e querem mandar em nós, associados a ódios e perseguições, que nos sentimos, orgulhosos de o termos conhecido Jorge Coelho e sentido que nos respeitava e que tinha consideração por nós.


A verdade, é que muitos dos que agora sobrevivem e de que maneira, também a coberto de estranhas sociedades, sentados ao colo de mil currículos, que nascem minuto e após minuto, que trago à memória, uma velha frase do saudoso e bom amigo António Rosa Mendes, a quem um dia perguntei: António o que é que sou? Sou jornalista, sou escritor? o que é que sou?


E no repentismo e na inteligência, que o caracterizava, respondeu: «Tu és o Neto Gomes e chega, porque anda por aí rapaziada com tanto curriculum, que já nem sabem o que são…


Conheci Jorge Coelho, a 14 de Agosto de 1995, num dia em que a Volta a Portugal teve como final de etapa Macedo de Cavaleiros, numa ligação de 153,300 metros, 10ª etapa, entre Tarouca e Macedo e que teve como vencedor Alésio de Basco, «o cigano», de rabo-de-cavalo, da Amore & Vita foi o primeiro e logo a seguir, com Delmino Pereira, o actual presidente da F. P de Ciclismo, a fazer segundo.


Por essa altura, desenhava-se na rua a pré-campanha de António Guterres, que por ali andava de braço dado com Jorge Coelho.


Presidia aos destinos de Macedo de Cavaleiros, o socialista Eng. Luís Vaz, diga-se um político de enorme prestígio na região, e que estaria no poder, de 1993 a 1997, tendo falecido em Agosto de 2015, com 64 anos…


Na cerimónia do pódio, de uma câmara na altura socialista, subiram António Guterres e Jorge Coelho, com este último, no final, sem nunca teros conversado, veio ter comigo e enquanto me dava um abraço, dizia-me: Ó homem. Você é o maior nesta coisa…


Foi aqui em Macedo, nesta barafunda da volta, e depois numa viagem relâmpago ao bar da Estalagem do Caçador, porque Guterres e Jorge Coelho, tinham muitas solas para gastar, que conheci Jorge Coelho, um grande homem, não apenas como político, mas também como ser humano, e de tal forma, que aqui no JA não tenho espaço senão para dar a entender, apenas, isso, o respeito e consideração que sentíamos um pelo outro.


Antes de abalarem da Estalagem, pondo fim aqueles dois dedos rápidos de conversa, a tal conversa de circunstância, Jorge Coelho, assim a modos de despedida, olhou para mim e disse-me: Ó camarada entregue o seu contacto aqui ao nosso motorista – e foi isso que fiz…


Dias depois, recebi um telefonema do Largo do Rato, da Secretária do Eng.º António Guterres, a dar-me conta de que o senhor Secretário-Geral, Engenheiro António Guterres gostaria de falar comigo em tal dia e às tantas horas.


Ficaram-me de confirmar o dia e a hora, o que veio dois dias depois, coma senhora a dizer-me:

– O Senhor Engenheiro gostaria de lhe falar no dia 4 de Setembro, às 15h00.


De imediato confirmei a minha presença, e no dia a hora marcada, lá estava, não muito nervoso, porque já tinha falado com muitos camisolas amarelas, e Guterres era na circunstância e a camisola amarela do Partido Socialista.


Mas não foi bem assim, só fica nervoso, que é responsável e comigo aconteceu isso, e para me acalmar, fui a pé, do Marquês de Pombal [agora tão na moda] até ao Largo do Rato.


E pior fiquei, quando a senhora que me atendeu, me disse:

– O Senhor Secretário-Geral está à vossa espera, mas só tem quinze minutos para conversar com o senhor.

Subi, cumprimentei-o, e nem tive tempo para falar. O Senhor Engenheiro António Guterres, falou, falou, disse-me o que queria de mim, e já em género de despedida, respondi:

– Pode contar comigo.


O convite, passava, como se veio a concretizar, para eu ser o speaker da campanha no Algarve e colaborar activamente, com a campanha dos candidatos a deputados no Algarve. Foi o que fiz, e que fiz, tantas e tantas vezes, mas existe malta, as tais sementes germinadas em aviário, que não sabem, e nem sentem, que eu fui, um dos que lhes arranjou a incubadora.


Há saída, como que sabendo que andava por ali perto, de uma das portas surgiu Jorge Coelho, que me deu outro abraço, e quase a mesma despedida: Ó homem que alegria em o ver por aqui. Contamos consigo.


Depois, ao logo de vários anos, cruzei-me com Jorge Coelho, não apenas na estrada da vida, mas também enquanto Ministro da Administração Interna, e eu como Representante da PRP e secretário da Comissão Distrital de Segurança Rodoviária no Algarve, onde humildemente o confessamos, realizamos, sobretudo, na governação de Fialho Anastácio, o trabalho mais evidente levado acabo pelas Comissões Distrital de Segurança Rodoviária no País.


Mais que qualquer palavra, e isto são lições que ficam, deixo aqui, salpicos da conversas, entre Jorge Coelho e António Guterres, quando da queda da Ponte de Entre os Rios, que definem também a força, a coragem, o humanismo, o respeito pelos cidadãos e pelo País.


Uma conversa que roubámos às páginas do Livro, Jorge Coelho – O Todo-poderoso, de autoria de Fernando Esteves, [Editor: A Esfera dos Livros].

“18 anos de Entre-os-Rios: mergulho aos bastidores da noite mais trágica da vida política de Jorge Coelho”, 4 mar 2019 12h27


Apesar dos apelos de António Guterres para não se demitir, Jorge Coelho, ministro do Equipamento Social, optou por fazê-lo assim que tomou conta da tragédia que, a 4 de março de 2001, vitimou 59 pessoas em Entre-os-Rios. Tudo na sequência de uma noite intensa em que, depois de falar com a mulher e a filha, vagueou pela escuridão das ruas de Oeiras, antes da conferência de imprensa fatal, já de madrugada.


Eram 22h00 quando Jorge Coelho, que jantava com um grupo de amigos num restaurante do Bairro Alto, recebeu a chamada fatal do seu assessor de imprensa, António Capinha:

Está? Tenho más notícias: houve um acidente grave em Entre-os-Rios…

– O que aconteceu exatamente?

Ainda não sei grandes pormenores mas sabe-se que caiu uma ponte quando por lá passava um autocarro de passageiros…

– Quero saber rapidamente a dimensão do acidente, temos de reagir já!


O ministro terminou abruptamente o jantar e ligou imediatamente a António Guterres:

– António, temos aqui um problema.

O que foi?

– Uma ponte caiu em Entre-os-Rios. Ainda não sei muitos detalhes, mas temos de estar atentos. Estou agora a ir para o Ministério.

Acompanha a situação e quando souberes mais detalhes liga-me.


Já passava da uma da manhã quando saiu para a rua. Tinha de pensar. Estava na iminência de tomar a decisão política mais importante da sua vida. Naquele instante era claro para si que o sonho que projetara com o seu amigo António Guterres estava prestes a terminar.

Atravessou a escuridão das ruas de Oeiras. Fez um flashback da sua vida política. As memórias eram entrecortadas pelas imagens da ponte destruída.


O telefone tocou de novo. Era Capinha, com dados mais sólidos: a derrocada de um pilar da ponte Hintze Ribeiro, que unia Entre-os-Rios a Castelo de Paiva, provocara o afundamento de um autocarro de passageiros e de duas viaturas ligeiras. Havia mortos e cerca de 70 desparecidos. Uma tragédia. Nessa altura já o jantar terminara de forma abrupta. Era urgente falar de novo com o Primeiro-Ministro.

– António, isto é uma tragédia brutal. Há mortos, pá! As pessoas vinham de um passeio e a ponte ruiu. Já dei instruções aos meus dois secretários de Estado [Luís Parreirão e José Junqueiro] para seguirem para lá.

Fizeste bem, eles que nos mantenham informados.

– E eu acho que temos de retirar consequências políticas disto, pá!


Pela primeira vez naquela noite utilizaria uma expressão que repetiria à exaustão:

– A culpa não pode morrer solteira.


O ministro do Equipamento Social conhecia bem a ponte Hintze Ribeiro. Tinha lá estado quatro dias antes, quando, aproveitando uma visita a um amigo de Penafiel – Agostinho Gonçalves, socialista e ex-presidente da autarquia -, aproveitou para ir verificar in loco os problemas que sabia existirem no pavimento.


As notícias continuavam a chegar. Mais mortes confirmadas. Ainda mais corpos por encontrar. Sentado sozinho no seu gabinete, pensava nas famílias das vítimas. Como explicar uma fatalidade daquela dimensão? O que poderia ele fazer para atenuar a dor de mulheres que ficaram sem maridos, de crianças que ficaram sem pais? Perdera o seu pai com apenas seis anos; sabia o que é crescer sem um. Tinha de tomar uma decisão radical.


Morreram 59 pessoas na sequência da queda da ponte de Entre-os-Rios créditos: © 2016 LUSA – Agência de Notícias de Portugal, S.A.


Foi para casa e falou com a mulher e a filha. As duas disseram-lhe o que muitos lhe tinham dito nessa noite: que a culpa não era sua. Mas apoiaram-no sem reservas na intenção de se demitir.


Já passava da uma da manhã quando saiu para a rua. Tinha de pensar. Estava na iminência de tomar a decisão política mais importante da sua vida. Naquele instante era claro para si que o sonho que projetara com o seu amigo António Guterres estava prestes a terminar.

Atravessou a escuridão das ruas de Oeiras. Fez um flashback da sua vida política. As memórias eram entrecortadas pelas imagens da ponte destruída. Era um fardo demasiado pesado. Tinha de tomar uma decisão definitiva. Já em casa, ligou ao seu assessor de imprensa:

– António, quero que marques uma conferência de imprensa.

Para quando?

– Para daqui a pouco, pode ser para as três da manhã. Não digas aos jornalistas qual é o objectivo da conferência. Diz-lhes só que vou comunicar algo de importante.


Faltava fazer o telefonema mais marcante da sua carreira – aquele em que comunicaria ao seu amigo António o fim da aventura conjunta.

– António, acabo de convocar uma conferência de imprensa para anunciar a minha demissão.

Jorge, não tens de fazer isso. É um exagero da tua parte, garanto-te!

– Eh pá, andamos nisto os dois há vinte anos. Tenho de sair para salvar o que já construímos, temos de defender o projecto. Vou fazer isto não só por mim mas também por ti, pá, pelo projecto, por tudo.

Mas não tem de ser assim, Jorge…

– Não há outra forma. Uma coisa desta dimensão exige uma tomada de posição radical. São muitos mortos, pá. Temos de dar o exemplo. Se não saio isto vira-se contra ti.

Não faças nada antes de voltarmos a falar. Vou ter contigo ao Ministério.

– Não vale a pena, pá. A minha decisão está tomada […]


Começou por falar ao coração dos que mais sofriam nessa noite: “Quero apresentar as minhas sentidas condolências às famílias enlutadas…” Depois divagou sobre as vicissitudes da democracia: “O conceito que tenho do exercício do poder político faz com que a culpa não possa morrer solteira e perante uma situação como esta têm de se tirar consequências políticas…” Logo a seguir, retirou-as:

“Já solicitei a minha demissão de ministro do Equipamento ao Primeiro-Ministro e considero que não tenho condições para continuar a exercer o cargo que venho exercendo até ao momento…” Terminou com algumas palavras sobre Guterres: “Lutei muito por ele e lutarei muito por ele. O país tem um grande Primeiro-Ministro, que me terá sempre a seu lado.”


Depois de ter perdido o seu braço-esquerdo – António Vitorino -, o líder do Executivo via-se assim amputado do braço que lhe restava – a partir daquele momento estava por sua conta. Finalizada a declaração, Coelho foi conduzido a casa por Rui Henrique, o seu motorista durante anos. Esperavam-no Cecília e Maria João. Não dormiu, claro. Sentou-se no sofá com o comando de televisão na mão. Foram horas de zapping, de canal em canal, sempre à procura de novidades sobre o acidente. Sentia-se derrotado. Tantos anos de luta, tantas centenas de milhares de quilómetros percorridos, tantos jantares, tantos comícios, tantos apertos de mão, tantos compromissos e tantos discursos depois, olhava para si, afundado naquele sofá, e sentia que não merecia ter acabado assim […]”


Agora sou eu, não a dizer, mas escrever: Obrigado Ó HOMEM, PELO HOMEM QUE FOI.


Morreu Jorge Coelho, oxalá a democracia se inspire nele, porque necessitamos de continuar a revolução da paz, da justiça, do respeito pelos cidadãos, esta é a maior homenagem, que se pode fazer a Jorge Coelho. Um homem fraterno, humano, amigo do seu amigo.

Neto Gomes

Nota: O teor deste texto é baseado no livro “Jorge Coelho – O Todo-Poderoso”, da autoria de Fernando Esteves, diretor do Polígrafo.

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