Remate certeiro: Numa viagem de comboio

Numa viagem de comboio o pior é quando desaparece o nevoeiro

As vidraças das carruagens, pelo menos as da primeira classe onde viajo, aproveitando o desconto social por ser velho (não gosto do chavão idoso), parecem escuras e pela moldura geométrica que apresentam, quase que estamos perante as vidraças de um aquário. E também estão escuras, porque ainda que não sendo de madrugada, o sol ainda não se empinou.


No lugar onde estou sentado, só tenho disponível 1/8 da janela. Se calhar encurtaram-me a visão devido à minha idade. Mesmo assim, dá para espreitar o nevoeiro que corre lá fora.


Eu que tanto gosto de esborrachar o meu olhar contra a paisagem, e por isso, vou descobrindo no intervalo entre as árvores, a beleza de algumas hortas, apesar da visão meia opaca devido ao nevoeiro e à velocidade do cavalo de ferro…


O meu vizinho, sentado no outro lado da cochia, que embarcou em Albufeira, ainda tem nos tímpanos, tal como eu, que até tenho falta de ouvido, o grito desesperado do gravador do Alfa: cuidado com a distância entre a plataforma e o degrau… raro, encontramos um degrau… Se calhar se esqueceram de os mandar fazer e ninguém avisou o senhor tão preocupado com quem entra e com quem sai…


Mas regressemos ao meu vizinho do lado, ainda procurando instalar-se.


Tira o blusão. Coloca-o na bagageira acima das nossas cabeças. Neste caso acima da sua cabeça. Atira a mochila para cima do assento, retira o computador e porque o Alfa desliza agora mais rápido sobre as fitas negras onde assentam os carris, que assistimos a algum embaraço nas manobras que o meu vizinho vai fazendo.


Ligou o computador. Voltou a rebuscar a mochila à procura da caixa dos óculos e depois retirou da mesma a flanela para os limpar.


Num repente ouve-se outra vez a voz do gravador do Alfa: Chegamos a Santa Clara/Saboia. E depois a lengalenga: cuidado com a distância entre a plataforma e o degrau…

É preciso cuidar dos comboios. Mas tem gente que deveria viajar de camião


O comboio pára, arranca sem aviso. Começo a ter saudades do tempo em que o chefe da estação fazia com que a corneta perturbasse o silêncio, enquanto remexia a lanterna avisando o maquinista, que era o momento de se pôr outra vez a andar. Chovesse ou fizesse sol…


Lá fora a paisagem mostra-nos agora casas velhas, estampadas de grafitis. Outras cuja caiação o tempo foi tisnando e liquidando a brancura. Paisagem que corre agora a um ritmo apressado, parecendo esta em competição com o cavalo de ferro, que segundo o gravador, chega e parte no horário previsto.


Finalmente o meu vizinho do lado, abriu o computador, que num instante já está em pleno. Se fosse o meu só abria quando chegássemos a Entrecampos, mas o dele abriu logo à primeira. Pela urgência com que se debruçou sobre o mesmo, sempre pensei que fosse analisar as perdas e os ganhos da Bolsa, mas não, começou a ver um filme.


Os meus olhos apesar do esforço e da capacidade profissional do amigo e Dr. Luís Filipe Vieira. Sim! Não me enganei no nome. É mesmo Luís Filipe Vieira… Não consigo ler as legendas. Também deixei os óculos em casa, porque embaciam com a máscara.


O filme começa logo com tudo à batatada, fazendo lembrar os tempos em que em Vila Real de Santo António, quando os camones que andavam embarcados e ali aportados. Ali ao maior Porto Comercial do Sul do País. E quando, entravam no Empurre ou nas Janelas Verdes, a fazer um grande cagaçal ou banzé, logo de lá eram despejados. O problema é que o Empurre ficava a cem metros do Hospital Marquêz de Pombal, mas as Janelas Verdes eram porta com porta.


O meu vizinho do lado estava tão concentrado na pancadaria que pôs a garrafa de água à boca sem tirar a máscara. Acto imediato, esbocei uma gargalhada, ao mesmo tempo que a minha Maria esboçava uma cotovelada, e por isso ambos ficámos pelo esboço…


Três lugares mais à frente uma criança jogava às cartas com o avô e cada vez que este jogava uma carta, a criança gritava: És um robanito, O avô é um robanito, enquanto o avô com uma gargalhava amansava o protesto.

Isto não se diz, filho – disse a mãe, acrescentando: Olha que o Nosso Senhor pica na língua. Coitando do Nosso Senhor, que é o culpado de tudo.

Todos roubam, até o avô, e o Nosso Senhor é que é o culpado.


O Alfa Pendular segue a sua marcha. Escuto o deslizar de um carrinho. É o momento da venda de alguns produtos, nomeadamente água, cerveja ou refrigerantes. Bolachas e chocolates. É só escolher. Mas ninguém escolhe nada. O carrinho chega e parte à velocidade do comboio foguete. Será que não compram porque o vendedor é o revisor? Se calhar estavam à espera de alguma boneca de saltos altos, com a saia até ao pescoço e a baloiçar com os caprichos dançantes da carruagem…


O nevoeiro é cada vez mais denso. Já o começo a confundir com a sujidade dos vidros da janela, mas escuto bem a surdina do casal que vai sentando nos lugares seguintes: pensava que era uma garota que fazia estas vendas…


O gravador anuncia: Próxima paragem Funcheira. Atenção à distância entre o degrau e a plataforma.


Funcheira. Aí, que saudades aí, ai, de ter chegado à Funcheira. Que saudades das paragens que aqui fazia quando rumava a Beja, quando andava pelo RI3. Eramos uma multidão de fardas verdes. Todos de bifanas na mão, desejando que o chefe da estação desse à corneta para o comboio a avançar, porque nem todos tínhamos dinheiro para liquidarmos a bifana. Eu sempre paguei. Nunca fui um grande aventureiro nessas coisas.


Depois para isso, também nomes finos: Vieiras, Rendeiros, Salgados, Berardo e tantos outros cronos, alguns até são os números da bola, medalhados pela política e por outras artes, nos grandes salões alcatifados, emoldurados por quadros, louças e outras preciosidades, que nos trouxeram da India, de Macau, de Timor, de Angola, de todos os sítios a que chamavas-mo de Nosso Império. O pior é que são estes cromos, raramente condenados, que nos têm tramado a vida…


Neste momento estou na Estação da Funcheira. Tanta coisa se renova em mim. Mas são tudo coisas com quase sessenta anos…

Cais Comercial de Vila Real de Santo António. Como morre a história. Hoje nem serve para o ferro velho


O meu vizinho do lado, olha ao outro lado da vidraça e regressa ao filme. Ao vendaval de porrada que tem agora o epicentro à porta de uma Igreja. Já não se respeita nada nem ninguém.


Sob os carris cada vez mais amolgados pelo rodado, o Alfa, como um fugitivo começa a deixar a Funcheira para trás, enquanto que o sol, depois de despachar o nevoeiro, começa a entrar pelas janelas, pelos menos nos n.ºs 24 e 26 ocupados por mim e pela minha Maria. O sol mostra agora de forma mais visível a sujidade das janelas. É natural…


No computador do meu vizinho continua tudo à bancada, enquanto enjaulado junto ao tecto do Alfa dou de caras com um televisor. São imagens da TV Nordeste, na qual o Zé da Bica, dá uma entrevista, no centro de um campo de futebol. Diga-se um campo relvado. Não sei nem o que lhe perguntam, nem o que ele responde. Assim fico melhor. Não me irrito.


Lá fora, na rua, por onde passa o Alfa, que com esta velocidade ninguém o apanha, e junto ao uma árvore despida de tudo descubro um monte de lixo. Creio ser o mesmo que vi quando da minha última viagem de comboio. Até o pobre do lixo está abandonado. Entre estes restos de vida vejo uns sapatos. São os mesmos da outra viagem. Alguém anda descalço, há imenso tempo.


Agora à medida que o dia começa a ficar mais vivo, é que descubro que as janelas do comboio metem nojo. Quem me dera que o nevoeiro regressasse.


Ermida do Sado. A lengalenga do costume. O filme do meu vizinho é o mesmo.


Não sei se já vou rebobinado, mas creio que não, porque agora tudo se passa dentro de um bar, onde as garrafas parecem uma fábrica de vidros na Marinha Grande.


De joelhos no chão, um velho de meia-idade de boca aberta recolhe o liquido de uma garrafa adormecida em posição horizontal que ainda baloiça em cima do balcão.


Mais tiros. Mais vidros. Até o grande espelho que fazia de pano de fundo do bar, agora não passa de um monte de aparas…Outra explosão, de cujos escombros se solta uma rapariga com roupa a menos.


Cansado de tantos tiros regresso ao televisor da casa, e agora dou de caras com a TV do Alto Minho. Nesta altura fala o Miguel Alves, Que quando se preparava para dizer alguma coisa, voltei a ouvir a voz do neto, que chamou roubanito ao avô…


Estamos em Grândola. Fico por aqui, onde existe um sentimento de fraternidade e onde o povo já não é quem mais ordena…


Começo a assobiar só para mim a Grândola, do Zeca Afonso…

Em Grândola veio-me à memória a fraternidade ausente. Esta placa simboliza em Coimbra a residência de Zeca Afonso, enquanto estudante


E porque é cada vez mais distante, o espaço entre o Alfa e a plataforma vou tentar adormecer, acima de tudo por culpa do meu vizinho do lado, que desligou o computador.


Quando acordei estava em Entrecampos. Em cima da hora. O pior foi o regresso, pois uma avaria do comboio em Campanhã obrigou a que viajássemos sempre com quarenta minutos de atraso.


Na próxima edição, se por aqui andar, farei a viagem de regresso. Quem sabe se nessa altura, já o Alfa possa ter contratado alguém que pontualmente faça a limpeza das casas de banho e ligue a água. Claro que a CP também não é culpado, que existam passageiros que deveriam ser transportados em camião…

Neto Gomes

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