Remate certeiro: O Monte dos Osórios em Salir

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O Padre Messias, a galinha à moda de Loulé no Monte dos Osórios, em Salir e os Bancos com nomes de pessoas…

O Padre Messias, andando e olhando para trás e para a frente, para que não fosse surpreendido, arrancava uma ou outra folha de palmeira para poder ornamentar a sua Igreja, pois mais logo iria receber a visita do Bispo D. Aparício Apolónia, que era filho da terra, Salir, mas nascido na Fonte das Bufas, um lugarejo com mais galinheiros que casas.

O confinamento não permitia romarias e nesse dia a procissão de Nossa Senhora dos Mártires nem dobraria os porões da Igreja, mas mesmo assim e como era tradição, o padre queria o andor muito florido e embelezado.

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Num repente o Padre Messias ouve um ruido estranho e depois uma gargalhada, primeiro assustado, mas depois satisfeito, vê aproximar-se a Irma Esmeralda, que vinha ajudá-lo

A irmã Esmeralda roçava os sessenta anos, e daqui não vinha mal algum ao mundo, o pior é que nos últimos anos, uma doença na coluna, que desde há muito tempo que se vinha anunciando, pô-la a andar tão curvado, que na aldeia já lhe chamava a irmã do arco.

– Irmã! Que vem fazer aqui?, interrogou o Padre Messias, para depois num fôlego mais dilatado, acrescentar: – Se calhar só vem atrapalhar. Agradeça ao Senhor a sua protecção por cá andar com todos estes padecimentos, mas por favor, regresse à Igreja e procure falar com o Isidro, carpinteiro, porque tenho aqui uns ramos de palmeiras que ele terá que ajeitar, assim como três braçadas de linda flores que lá deixaram, para os poder utilizar no altar da Senhora dos Mártires.

A Irmã Esmeralda, que as pessoas da Aldeia com mais idade tratavam por Gemeralda, mal chegou à terra vindo de Celorico da Beira, ainda que nascida em Vale de Azares, pertencente ao mesmo concelho, começou por tratar do Senhor Francisco Patameira, alentejano de Mértola, e que aqui se estabelecera, chegando mesmo a ser um importante proprietário e negociante de frutos secos.

Francisco Patameira, também era conhecido pelo Chico Sem Ceroulas, alcunha trazido de um tio-avô, que tinha estado na guerra e em Flandres combateu na linha da frente, e cuja alcunha vinha da terrível infância que teve. Bem. Também ninguém nasce vestido….

Já o Padre Messias tinha chegado a Igreja dos Mártires com duas grandes braçadas de ramos de palmeira e bem bonitos

A noite, lá no monte dos Osórios caia. Noite linda de luar, num belo luar de Agosto.

– Até me apetece contar as estrelas – ouviu-se de repente da longa e bem saudável conversa, que o casal Osório vinha tendo. Ela tinha sido costureira, fazendo durante anos algumas fardas para o Hotel Eucalipto, ali no sitio da Fonte da Bufa, na hora boa do turismo, quando chegavam gameladas de camones. O nome não era inspirador, mas o ar que ali se respira era maravilhoso.

Dona Adelina insistia, pensando que seu marido Eusébio Osório não a tivesse ouvido.

– Com este luar apetece-me contar as estrelas

– Não!, não faças isso exclamou o marido com a voz embargada. Sempre ouvi da boca da minha avó Clotilde, que Deus tem em paz e descanso, que dava azar contarmos as estrelas. Dizia ela, que até que nasciam verrumas nas mãos dos contadores das estrelas…

– Oh homem não será por isso. Vou descansar o olhar vendo as estrelas e sem as contar – exclamou Dona Adelina, enquanto levava à boca um figo torrado e mais um cheirinho de medronho.

De quando em vez, o silêncio era esgravatado pelo ruido de um carro, que parecendo perto vinha longe, com as luzes a surgirem dançantes e a jogar connosco às escondidas, no aparece e desaparece, entre a ramada das árvores.

– Eusébio. Eusébio, o céu parece que num repente dobrou as estrelas, que coisa estranha. Olha, olha, dizia Adelina, quase gritando.

Com a sua habitual calma e remexendo no cachimbo, com um tronco solto de uma oliveira, o marido exclamou

– Adelina. Descansa um pouco os olhos. É natural que vejas as estrelas a dobrar, porque já vais no terceiro dedal de medronho.

Dedal. Era assim, que Adelaide tratava o seu copinho de estimação. – tens razão homem. O calor da noite, apesar do fresquinho aqui da serra, e o medronho, e este é do bom, já começa a cuidar de mim. Tens razão. Vou dar aqui uma ou duas pendedelas, até que que comecem a soar os foguetes.

Do Monte dos Osórios, em Salir, quando não havia neblina se avistavam as “mamas das moças” na praia

O Monte dos Osórios, ficava muito bem situado no coração da Aldeia. A Vista para a terra onde tinha nascido Carlos Aragão Fabrício, que em 1908, tinha fundado em Alte um jornal contra o clero e a monarquia, mas que tinha textos brilhantes não apenas contra o regime e a igreja, mas também de informação muito assertiva quando já se contavam pelos dedos, os dias que faltavam para cair a monarquia…

Ali, no Monte dos Osórios, durante o dia, com céu limpo tudo se avistava, até o mar. Dizia o Chico Caetano, velho ferroviário, quando tinha um copo a mais, que quando olhava lá de cima para a praia da Quarteira, via a mamas das moças. A mulher, filha de um velho açougueiro, natural da Tor, que após a morte do pai, guardou todos os apetrechos do talho, dizia: – Cala-te homem de um raio, qualquer dia coloco-te a cabeça no cepo e deixas de tocar gaita. Como ele se ria, quando a mulher falava em tocar a gaita. Ria, ria, ria…

Pouco a pouco, mais famílias se juntavam aos Osórios, mas o Padre Messias, chegaria mais tarde. Queriam ver os fogos e ouvir os foguetes, num dia tão estranho, que nem a procissão saiu devido à pandemia, e só abriram a porta da igreja, num dia em que até a quermesse tinha sido proibida. Nada de ajuntamentos, mas os foguetes nada tinha a ver com os confinamentos,

Entre a meia dúzia que ali se juntava, e por essa altura já se somava outra meia dúzia de casais, também estava gente viúva, por exemplo o senhor João Lampreia, que nunca fez nada na vida, mas veio a herdar uma funerária, e ao mesmo tempo que rezava para que a malta morresse, pôs os sobrinhos a tratarem do negócio.

Era surdo que nem uma porta, como o povo costumava dizer. Semanalmente pedia contas aos sobrinhos, pois num tempo em que ainda ouvia, ainda escutava o dobrar dos sinos, já sabia que havia algum funeral, e desta forma ficava mais ou menos a par do negócio.

Depois deixou completamente de ouvir, e já iam mais de trinta anos assim, semanalmente, contas certas, dinheiro contado e a sua parte empurrada para o colchão, porque não acreditava nos Bancos, sobretudo quando passaram a ter nomes de pessoas: Sancho, Borges e Irmão, Pinto Magalhães, Totta, Fonseca e Burnay, mas, sobretudo Espirito Santo, e essa mania vinha do tempo em que foi enganada por um empresa de Lisboa, que transferia dinheiro, de seu nome Pancada e Morais, mas quem levou a pancada foi ele.

Ainda há uns anos atrás, quando nasceu o Novo Banco, e o homem parecia bruxo, ficou pelos cabelos, porque há muito anos, ainda ouvia, tinha sido enganado pelo seu tio Manuel Novo. E quando apareceu o Novo Banco, disse para com ele: – Punhefla, pensava que o meu tio Manuel Novo estivesse bem enterrado.

No Monte dos Osórios o silêncio, agora já era a dobrar como antes tinha acontecido ao olhar da Dona Adelina. Silêncio agora só rasgado por uma ou outra bem cantante ressonada.

De repente luzes rasgaram o céu. Parecia que esse céu de Agosto tinha agora dois luares e que o céu necessitava desse despertar:

Pum, Pum, pum, – que atordoadas são estas, o que é isso, gritava o João Lampreia. O que isso, Adelina, Que atordoadas são estas… E sempre cada vez mais foguetes e sorrisos brilhantes de alegria.

Dona Adelina, indo a casa, afastou-se momentaneamente e quando regressou trazia consigo um funil que só servia para tirar o azeite dos garrafões para encher e as garrafas. E colocando o funil junto ao ouvido do senhor Joao e gritou a mil pulmões:

– São foguetes. Foguetes da festa.

– Para mim, estas coisas não são foguetes, são atordoadas, porque cada vez que os oiço, e ainda que muito mal, fico com a cabeça atordoada.

Os foguetes iluminavam o céu do Monte dos Osórios

Ainda havia foguetes no ar e a mesa continuava montada. A galinha do campo confeccionada à moda de Loulé, quase que ninguém lhe tinha tocado, ou para melhor, era um panelão cheio que dava para um regimento, rodeada de prato de presunto, queijo, chouriça assada, bom pão amassado pelos Osórios e cozido em forno de lenha e vinho que a dona a Adelina também fazia.

A molhada de amigas e amigos tinham adormecido com os foguetes, mas a Dona Adelina, a quem já lhe tinham passado os dois dedais de medronho e o seu marido continuavam firmes, ainda que já passasse da meia-noite, pois o Padre Messias, tinha dito, que mal saísse da Igreja iria lá provar a galinha.

Mais ou menos por volta da uma da manha, já todos tinham passado pelas brasas, e regressados à mesa, quando chegou o Padre Messias, acompanhado da irmã Esmeralda.

– Boa noite D. Adelina. Boa noite senhor Osório. Boa noite que Deus esteja com todos – disse o Padre Messias, para a seguir acrescentar: Têm lugar para mais dois, ainda que sejamos três, porque Deus também nos acompanha!

– Oh Senhor Padre e Irmão Gemeralda, até estávamos à vossa espera. Estejam à vontade – retorquiu a Dona Adelina.

Noite farta e apelativa por histórias, a última, e já passava das duas da manhã e relacionada com a grave surdez de que sofria o João Lampreia foi contada pelo Padre Messias.

– Não sei se sabem, nós os mais velho até temos esses testemunhos, que passaram de uns para os outros, ou seja, quando acabou a última guerra mundial lançaram muitos foguetes.

A multidão, segundo dizem reuniu-se no adro da Igreja para ouvir os foguetes, onde também se encontrava o João Lampreia, já muito surdo e cujo momento, tal como em muitos lugares do mundo, assinalava uma grande manifestação de jubilo.

E quando os foguetes começaram a soar na Aldeia, ali no sito da Fonte da Bufa, o João Lampreia teria perguntado, a um parente que estava ao seu lado:

– Chico Fava, que barulho é esse: – Acabou a guerra, primo João.

– Acabou a guerra – perguntou ele, para a seguir questionar: Então houve guerra….

Neto Gomes

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