Remate certeiro: O Rafa fez anos

O Rafa fez anos e como não havia velas colocámos quatro paus de fósforos em cima do bolo. Nesse dia começou a guerra

Só com os paus da fósforos da caixa grande é que conseguimos enganar o Rafa, que ele soprou com velas de sonho

Estávamos a 26 de junho de 2006, e tinha-me me deslocado a Vila Real de Santo António, para mais uma reunião de trabalho em casa do Senhor Manuel Caldeira, velha glória do Lusitano, do Sporting e do futebol algarvio e nacional, na recolha de elementos e documentos para a edição da sua biografia, que me tinha sido acordada pela autarquia vila-realense.


De quinze em quinze dias, lá me deslocava a sua casa, onde Manuel Caldeira me esperava, entrando sempre pelas traseiras, que davam para a «Rua da Forca» onde lá íamos conversando e juntando mais algumas peças da sua memória e do seu saber. Lembro-me que o livro, Manuel Caldeira «Agil, Combativo, Decidido, um Leão», só seria apresentado em 2007.


Depois desta reunião, juntamente com Hugo Cavaco, Mestre Rosa, Gica e o próprio Manuel Caldeira, encontrámo-nos no restaurante a A Columbófila, ali junto à Escola Industrial e Comercial, para almoçamos umas peles de atum. Eu repito, umas peles de atum.


Poderá parecer estranho, mas se existem pessoas que choram para comer cogumelos, por que raio eu mão poderia chorar para comer peles de atum guisadas com batatas.


Esta era a ementa, regada com uma vinho de rótulo duvidoso, porque o que importava era o diálogo ou conversas sem nexo, que vinham a seguir, feito de memórias, de encontros e desencontros, afinal caldeadas pela tal poção de que a VIDA É BELA.


O Gica e o Mestre Rosa, já tinham combinado tudo com o amigo Roque, que era então o patrão maior do Restaurante. Aliás, a única coisa que combinaram foi a hora, pois nestes almoços, com esta malta, quanto mais se combina, menos se acerta.


Íamos a começar a acossar os garfos e as facas, quando chegou o Marco Rosa, filho do Mestre Rosa, um menino que nós tínhamos assistido ao seu nascimento e crescimento, mas que não vinha só, trazia consigo o seu menino mais novo, o Rafa.


Depois de encostada mais uma mesa, dois partos, dois garfos e dias facas, estava o palco perfeitamente completo, empurrando-se apenas um pouco mais para o novo centro da mesa, um enorme tacho de barro, com as peles a luzir como peixes dourados em aquários.


Já perto da final da refeição, Mestre Rosa, que não é muito de lengalengas em público, sem se levantar, o que eu achei uma incorreção, avançou:

– Moços, vocês sabem quem é que faz hoje anos?


Silêncio total, até que ainda de forma individual, se foi escutando a voz do coro.

– Eu não sou – disse o Gica.

– Eu também não – acrescenta o senhor Manuel Caldeira.


Olharam para mim e eu respondi:

– Pessoal, eu também não, porque nasci em 27 do 10 de 44, que se fizerem a prova dos nove (será que os alunos sabem fazer!) dá resto zero, o que quer dizer, que eu não era para ter nascido.

O Marco, com a sua boa educação, também argumentou:

– eu também não, mas sei quem faz.


O Hugo, meio apressado, adiantou:

– Moços, eu também não faço hoje anos – ao mesmo tempo, que olhando para o Roque, adiantou:

– Traz a fruta…


Mestre Rosa, que tinha lançado a questão, lá se descoseu.

– Eu também não, mas sei quem que faz hoje anos.


Com o desatar deste nó, Mestre Rosa tinha acabado de levantar totalmente o pano do palco, de onde se iluminava agora o rosto bonito, tisnado de Charranito, do menino Rafa.


E quando, ainda sentados, quiseram começar a cantas os parabéns, levantei a voz, porque peles de atum, regadas com um vinho tinto de rótulo duvidoso roubavam alguma audição, e pior ainda porque já estamos todos a falar ao mesmo tempo.


Então, depois de me deixarem falar, o que era raro, adiantei:

– Primeiro ninguém canta os parabéns sentado. Depois, ninguém faz anos sem que exista um bolo.


Rafa, lá se remexeu na sua cadeira, sorriu, também comeu com jeitinho as peles de atum [creio que foi o meu primeiro biberon], porque as batatas e o molho estavam bons e sempre caia bem o pão molhado no caldo, enquanto que o amigo Roque, falou em surdina com a menina que estava na cozinha, muito mexida e toda educada, trazendo depois a mensagem.

– Dez minutos mais e têm aqui em cima da mesa um bolo.


A Rafa desenhou um sorriso até aqui nunca visto, de orelha a orelha, ainda que até ao momento, com excepção do Marco, o pai, o Mestre Rosa, o avô e o próprio Rafa é que sabiam quantos anos fazia o menino.

– Moço – espicaçou o Gica. – que merda é esta, que fazes anos e não dizias nada. Ainda bem, assim não tenho que te dar qualquer oferta.

– Isto é uma surpresa, disse eu.


Sempre que eu falava em surpresa, o Gica acrescentava: – Surpresa ou Pé da vinha – que eras duas marcas de vinho, que então existiam, diga-se para o meu gosto de provedor de cerveja, eram marcas maradas…


Estava a conversa, no desentendimento geral, a modos de manguitos para a censura, quando o tacho foi levantado e no lugar enão ocupava acabara de se sentar um bolo. O bolo tão desejado, para nós, uma verdadeira tábua de salvação, mas que para o Rafa, a não existência de um bolo seria difícil de engolir.

– Moços, levantem-se, – voltei a acenura. – Vamos cantar os parabéns ao Rafa.


Rafa, meio murcho, como se tivesse feito anos de casado, e numa linguagem branda a roçar salpicos de emoção, o que era previsível, porque fazia anos, disse.

– E as velas?

– Quais velas? – disse o Gica.

– Sim, pá!, respondeu o Rafa, três anos de idade, acabadinhos de fazer, mas ainda não comemorados.

– O meu bolo tem que ter velas. Assim, não quero o bolo…


Agora é que o caldo estava a ficar entornado. Onde que agora se iriam arranjar quatro velas ou uma vela com o número quatro.


O Rafa era agora o centro das nossas preocupações, pois começava a olhar para nós com a desconfiança e certamente a pensar:

– Faço quatro anos. Estou a almoçar com estes adultos e nem velas têm para colocar em cima do meu bolo de aniversário.


Chamei o Marco à parte, como pai do matulão e disse-lhe.

– Vou aqui à cozinha e se calhar vamos desembaraçar as velas com quatro paus de fósforos.


Marco, fez um sorriso, encolheu os ombros, e eu avancei cozinha adentro, enquanto o Gica e o Mestre Rosa acalmava o sacana do miúdo.

– Roque, ó Roque. É pá, arranjas aí uma caixa de fósforos, vou fazer umas velas com os paus de fósforos.

– Boa ideia, disse o Roque, mas não sabendo a nortada que viria a seguir.

– É pá, Rafa! Aqui estão as velas – e espetando quatro paus de fósforos no bolo, acrescentei em vós grossa para alegrar o Rafa.

– Marco, por favor acende as velas. Tudo em pé, vamos cantar os parabéns ao Rafa!!!

Uma das fotografias do aniversário do Rafa, inserida na biografia de Manuel Caldeira. Em cima, Mestre Rosa e Marco Rosa. Sentados, Hugo Cavaco, Rafa, Manuel Caldeira e Gica. Eu fui o autor da «chapa»

Moço, vai ali ao Gastão [agência funerária], que ele te arranja umas velas


Bem. O Rafa, mal viu os fósforos a arderem em cima do bolo, foi o bom e o bonito.

– Apaga o fogo. Aí o meu querido bolo.

– Calma Rafa – acrescentou o Gica, para depois agitar ainda mais as águas:

– Moços joguem mas é um balde de água para cima do bolo, ainda vão dar fogo à Columbófila.


O Hugo, Dr. Hugo Cavaco, juntamente com o avô do Rafa, o Mestre Rosa, deixaram logo o recado.

– Mó, Neto! Só dás barraca, com o Gica a acrescentar: – Não perdeste as qualidades.


Nesse começo de tarde, já estávamos todos com a água a entrara pela casa da máquina, como dizia o Zé Aranha, mas nunca a modos de tirá-la borda fora, e Manuel Caldeira, quando tinha água a mais e falava muito, fazia beicinho, e em certa ocasião perante a lengalenga das velas que já começava a dar sinais de começo de uma guerra, o velho defesa leonino falou, dizendo.

– Moço, vai ali ao Gastão [agência funerária], que ele te arranja umas velas.

A coisa que já estava preta, mais cresceu, agora com o Rafa mãos cruzadas em cima da mesa, mirando o bolo, onde já jaziam quatro paus de fósforos meios ardidos.

– Calma Rafa, acrescentou o Hugo no seu estilo paternalista.


Regresso, pouco depois, outra vez da cozinha, com o Roque a preparar a mesa para a fruta e perguntei à menina:

– Não tem uma caixa de fósforos das grandes?


Uma caixa das grandes queria dizer fósforos maiores.

– Sim tenho. Esta serve?


Nem olhei, agarrei a caixa, disse uma mentira ao ouvido do Rafa, ele começou a rir e a modos de agora ou nunca disparei:

– Malta. Já tenho aqui quatro velas e das grandes, ao mesmo tempo que colocava os fósforos grandes no bolo, pus o Rafa em pé em cima da cadeira, agarrado aos seus ombros, com o Marco a dar fogo às peças, leia-se aos fósforos, que desta vez impressionaram o Rafa de tal forma, que também cantou, mas não deixou que «os parabéns a você» chegassem ao fim, pois com uma grande sopradela evitou que o bolo se transformasse numa fogueira de S. João.


Feliz da vida, a partilhar abraços, o Rafa nunca mais na vida se esqueceu do seu quarto aniversário abrilhantado por um bolo intragável, ainda por cima coberto do paus de fósforos, simbolizadores das velas da festa.


Começava a ficar tarde, mas ainda tive tempo de dizer ao Roque:

– Moço, não me arranjas ai uma marmita com umas quantas peles de atum para levar para casa?


Dito e feito. Há noite, em casa, ao jantar, antes de me deitar, voltei a tomar o meu biberon…

Neto Gomes

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