Reposição de areias está a conseguir parar recuo da costa

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O mar está a deixar de ganhar terreno às areias e costa algarvias. Por exemplo, a Praia de Faro chegou a recuar um metro por ano. Hoje, a taxa de recuo é "zero centímetros". O feito deve-se à ação humana e às sucessivas realimentações que na última década e meia têm sido feitas na faixa arenosa entre Quarteira e Garrão. Todas as praias de Quarteira a Faro beneficiam. Realimentações que têm sido progressivas: na última década o volume de areias injetados nas praias algarvias foram 10 vezes mais do que na década anterior. Resultado: o mar continua a levar areia, mas a sua ação “atrasa-se” e não chega a lamber as arribas. A areia vai sendo reposta e a costa não recua. É um fenómeno único num país em que, sobretudo no Norte e Centro, o oceano "come" a terra a olhos vistos

Numa altura de alterações climáticas, inundações e secas extremas, subidas estruturais do nível das águas do mar, que destroem casas e bairros inteiros, no Algarve algo vai ao arrepio de tudo isto: a dinâmica costeira.

Especialistas desta temática garantiram esta semana ao JA que na última década as águas do mar algarvio praticamente deixaram de subir pelos areais adentro e a terra parece estar a ganhar ao mar, pela primeira vez em 60 anos. As praias têm mais areia, o mar mais esparsamente lambe as frágeis arribas, esboroando-as mais lentamente.

“As coisas melhoraram. Mas melhoraram muito, mesmo muito. No fim do século passado estávamos com os sintomas do desenvolvimento. Quando se começa a desenvolver fazem-se disparates sem nome. E na década de 90 tínhamos os disparates todos feitos. A partir de meados de 90, quando a competência passou para o Ministério do Ambiente, começámos a sanar passivo. Hoje, a coisa está bastante melhor”, garantiu ao JA o geólogo Sebastião Teixeira, da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), uma das grandes sumidades nacionais no assunto.

O “segredo” do recuo do mar está na intervenção humana, que desde há pouco mais de duas décadas realimentou as praias mais fustigadas pelo mar, onde o desassoreamento desenfreado fez das suas desde a década de 60 até há duas décadas atrás. “A última década e meia foi marcada por um conjunto de intervenções que permitiram minimizar os impactos relativamente ao que poderiam ter sido se estivéssemos numa situação idêntica ao final do século passado”, assinala por seu turno Óscar Ferreira, especialista na área da Universidade do Algarve.

Essa intervenção humana consistiu na injeção de milhões de metros cúbicos de areia nas praias mais castigadas pelo mar, com acento tónico na extensão de cerca de seis quilómetros de praia entre Quarteira e Vale Garrão, a leste, onde verdadeiramente terminam as arribas e a situação deixa de ser tão crítica. Mas esse troço é, para todos os efeitos, o mais sensível do Algarve, devido ao constante desassoreamento, isto é, à retirada da areia por parte das águas do oceano.

O mar e a areia são o gato e o rato
Segundo Óscar Ferreira, só no troço realimentação no troço de Quarteira/Forte Novo já existem 25 anos de realimentações. Nesse troço foram introduzidos dois milhões de metros cúbicos de areia nessas duas décadas e meia. E já está planeada uma nova intervenção para daqui a um ano, de longe a maior de sempre, com 1,6 milhões de metros cúbicos. ”Isso reflete-se na proteção das arribas dessa área, que era uma área com um recuo de arriba de 2 a 3 metros por ano, muito elevado, e que agora não se faz sentir porque existe uma proteção de areia à frente. A arriba era tocada várias vezes por ano e ia caindo. A média dessa queda andava entre os dois a três metros por ano, mas agora voltamos a ter recuo da maré”, reforça.
Um jogo de gato e de rato entre a areia e o mar em que a mão humana decidiu “fazer batota”, introduzindo toneladas de areia nas praias: “O que acontece é que agora o que está a recuar é a praia e não a arriba. Isso obriga daqui a uns tempos que se volte a colocar areia porque a praia vai desaparecendo, transportada pelas correntes. E se não se fizer nada voltamos a ter recuo da arriba”, enuncia o especialista da UAlg. Explica que essa areia é injetada por enormes tubos a partir do mar e vai-se buscar a uma profundidade marítima de 20 a 25 metros. Isto se não houver outras fontes de alimentação, como os produtos das dragagens de barras e canais, como aconteceu em 2011 na ilha da Fuseta, depois de uma enorme tempestade ter destruído 2/3 das casas ali existentes em dois meses. As casas, ou o que sobrava delas, foram demolidas e a praia foi realimentada com o produto das dragagens de uma segunda barra, entretanto aberta, como explicou ao JA Sebastião Teixeira, que na altura esteve à frente daquele teatro de operações, na altura como técnico da Administração da Região Hidrográfica (ARH) do Algarve, hoje APA/Algarve.

Pontões de Quarteira/Vilamoura

Os molhes interromperam o trânsito de areias e o mar subiu
Mas porquê esta “mania” do mar de retirar areia das praias em determinados segmentos de costa? Ao contrário do que se possa pensar, nada disto tem (pelo menos por enquanto) a ver com alterações climáticas e com a prevista subida do nível das marés, com efeitos previsíveis para daqui a 30 a 50 anos, se nada for feito contracorrente. Isso será uma tendência muito mais estrutural e de natureza diversa.
Em linguagem simples, Sebastião Teixeira explica: “O mar precisa de areia e nós interrompemos a areia que o mar queria. A areia acumulou nos molhes e pontões e não passou para nascente. O mar então foi buscar a areia às arribas. O mar ao embater na costa faz a deriva litoral, que é o transporte de areia ao longo da costa. Quando se fizeram os molhes da marina interrompeu-se esse circuito. Desatou tudo a ser erodido, nas arribas. No caso pior do Algarve chegou a atingir 10 metros por ano de recuo de costa. Como o mar precisa de areia, tirou a areia da praia, foi andando, andando, e foi buscá-la às arribas”.
Tal como agora é o homem que tenta salvar as praias e evitar as quedas das arribas, os maus da fita que levaram ò mar a ter “mau comportamento” foram também obra de mão humana: “O disparate foram os molhes da marina de Vilamoura, que interromperam o trânsito de areia de oeste para este, que é o percurso natural das areias no Algarve. Que desassoreia a zona leste e esse é o grande problema de erosão da região no virar do século. Vinte anos depois o problema está sanado”, releva Sebastião Teixeira, que ajunta outros pecadilhos humanos que impediram o transporte de areias para leste: o porto de pesca de Quarteira e os próprios molhes que dividem praias, também em Quarteira, na zona urbana. Todos esses molhes e pontões impedem a areia de se expandir para nascente e o mar vai buscar areia onde ela existe: nas praias. E quando acaba a areia das praias, o mar avança pelas praias adentro, “toca” nas arribas e derruba-as.
Para se ter uma ideia da destruição de costa causada pelos molhes e pontões de Vilamoura e Quarteira, o especialista da APA salienta que antigamente as arribas recuavam, por via natural, 0,3 metros por ano (30 centímetros). Como resultado da ação antropogénica, há três décadas houve momentos em Forte Novo que chegaram a 10 metros por ano! “Este é o cenário que o Ministério do Ambiente apanhou em 1993. O que nós fizemos foi dar ao mar a areia que ele queria, a alimentação artificial.

Injetar mais de 1 milhão de metros cúbicos de areia por década
Mas de quanta areia precisa o mar naquela zona do Algarve? “De 10 em 10 anos tem que se dar 1 milhão de metros cúbicos às praias entre Quarteira e o fim das arribas, que é o Garrão. Depois já não há mais arribas. São seis km de costa, de 10 em 10 anos dá-se 1,2 a 1,3 milhões de areia ao mar”.
Uma operação cara, mas não tanto como se poderia supor: O preço da areia ronda os seis a sete euros por metro cúbico, o que significa que há que gastar 6 a 8 milhões de euros de 10 em 10 anos. São 600 mil euros por ano, uma ninharia, comparado com os benefícios trazidos por essas operações, sobretudo para o turismo e todas as atividades conexas com ele. Sebastião Teixeira não deixa contudo de aduzir que lhe deu muito trabalho a convencer o pessoal da Administração que a alimentação não servia para meter mais turistas na praia! Serve sim para salvar a própria existência da praia e evitar o recuo da linha de costa, isto é, a queda de arribas. E para afastar os veraneantes das arribas.
Aliás, só para se ter uma ideia dos benefícios da realimentação, Óscar Teixeira garante que se não tivessem sido feitas, Quarteira hoje pura e simplesmente não teria praia em maré alta – na zona urbana -, Vale de Lobo teria elevadíssimos problemas e uma parte das casas e da piscina teriam caído. E a Praia de Faro não seria alimentada por essas areias, que a têm alimentado. “A Praia de Faro estava com um recuo de 1 metro por ano e agora tem zero”, jura o especialista em dinâmica costeira.
Sebastião Teixeira corrobora: “Esta alimentação até Garrão tem outro benefício colateral. Esta areia que o mar vai transportando de poente para nascente vai alimentar a prazo a praia de Faro. Como diz o Óscar, está a zero porque a gente tem dado a areia de que o mar precisa. O nosso foco era Quarteira/Garrão, mas ao resolver este foco também resolvemos a tendência erosiva que havia para nascente, que deixou de existir”.

Praia Dona Ana, em Lagos

O “diabo” são as tempestades de Inverno
Excetuam-se os casos das tempestades de inverno que periodicamente assolam a costa algarvia. Como a Ema, de 2018, uma tempestade com um período de retorno de 20 anos. “Mas o problema da erosão crónica está resolvido. Se não, seria muito pior quando há essas tempestades”, aduz o geólogo da APA, distinguindo o problema longitudinal – ao longo da costa –, que considera solucionado, do problema transversal, constituído pelas tais tempestades esporádicas que galgam as praias e que, no caso da Praia de Faro, faz o mar atravessar todo o istmo continental até à ria, a norte, levando sedimentos arenosos com ele.
“A Praia de Faro está estável do ponto de vista longitudinal. Do ponto de vista transversal, qualquer praia com tempestades queixa-se”, metaforiza em conclusão.
Mas se a situação mais crítica é entre Quarteira e Praia de Faro, o Algarve tem outros problemas erosivos e de dinâmica costeira. Na zona de Portimão, por exemplo, em 2015 teve que ser feito um dos maiores enchimentos pontuais de sempre na região, na praia da Dona Ana. Foram 300 mil toneladas de areia, para “melhoria das condições de estabilidade da linha de costa e o aumento da largura da praia para uso balnear/recreativo”, segundo um relatório técnico publicado pela APA em 2018 a que o JA teve acesso. “Dona Ana foi uma dessas grandes alimentações para tirar as pessoas da base das arribas”, explica Sebastião Teixeira.
Tirar pessoas das arribas é uma emergência quando nos lembramos de alguns acidentes pessoais que assinalaram os últimos anos, sobretudo a tragédia da Praia de Maria Luísa, concelho de Albufeira, em 22 de agosto de 2009, quando uma arriba atingiu um grupo de veraneantes que se encontravam na sua base e matou cinco delas.
“Em Alvor [a realimentação] foi um sucesso. Quando chegámos, Alvor estava o pior que alguma vez esteve. E 20 anos depois já temos a praia de Alvor como era antes das torres da Torralta. Essas torres são do princípio dos anos 70, são produto da ignorância humana. Desde 1996 fazem-se alimentações periódicas no Alvor e revertemos a situação.
Além dos casos já enunciados, na zona crítica entre os concelhos de Lagoa e Lagos tem havido intervenções: “Fizemos várias alimentações em Lagoa. E a ideia era afastar as pessoas da base das arribas, não era pôr mais areia na praia para evitar as marés, ou ter mais turistas na praia. Se pusermos mais areia na praia, as pessoas naturalmente vão para a beirinha de água. Era mitigar o risco”, afirma Sebastião Teixeira.

Dez vezes mais areia desde 2010 do que na década anterior
Mas para lá das realimentações periódicas que se fazem sobretudo desde a década de 90, “a década da viragem positiva foi 2010 a 2020. Nesse período pôs-se dez vezes mais areia do que na década anterior. Em 2010 fez-se a primeira grande alimentação de Vale de Lobo”, sublinha o técnico da APA. Segundo o Relatório nacional de 2018, nessa ação, a praia do Forte Novo levou 1,3 milhões de toneladas de areia entre 2010 e 2011.
Nos dois extremos longitudinais da região, o risco e a ação do mar são bem inferiores âs zonas mais centrais da região. No extremo barlavento, no concelho de Vila do Bispo, porque a natureza das arribas é diferente, mais robusta e portanto muito menos sujeita a quedas por via da ação do mar. Isto para lá de não haver esporões, como sucede no concelho de Loulé.
No extremo sotavento (entre Tavira e VRSA) não há problemas, “tem ainda uma boa acumulação sedimentar, tem boa estabilidade e grande largura de praia”, explica o professor da UAlg, secundado por Sebastião Teixeira, que afiança que “de Manta Rota para VRSA tem tudo crescido em matéria de areias. Não está a regredir, antes pelo contrário, está a progredir. Isso tem a ver com as dinâmicas marítimas e sedimentares da baía de Cadiz, é um fenómeno natural”.
Isto não implica que nas zonas de menor risco não haja prevenção e precaução: ao longo da costa, graças à ação dos Planos de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) tem havido recuos dos bares e restaurantes de praia, nas últimas duas décadas. “O que se pretendia era robustecer o cordão dunar frontal e recuar para uma zona mais interna, que estavam no cordão dunar frontal. E além disso passaram a ser em estacaria sobre-elevada, permitindo a passagem de areias e marés cheias e prevenindo inundações”, afirma Óscar Ferreira.
A ação antropogénica mais nefasta está pois a ter efeitos regressivos notáveis nas últimas duas décadas. Erros humanos como as construções desenfreadas nas ilhas, o respaldo legal dado a urbanizações como a zona central da Praia de Faro, a construção de esporões e pontões e a construção em cima das arribas fizeram do Algarve um caso negro, que agora, quanto aos viés da dinâmica costeira, está a ser revertido, meio século depois dos primeiros disparates.
Mas, assinalam as nossas fontes, isso não significa que não se mantenham inúmeros problemas. A Praia de Faro é um deles e, releva Óscar Ferreira, o Polis foi praticamente uma oportunidade perdida para fazer da praia um paraíso, de acordo com as leis da natureza. “Não se pode fazer estas operações contra as pessoas, não se contou com as pessoas”, repete.
Mas os erros foram muitos e vêm de longe, começaram logo pelo aeroporto, salienta Sebastião Teixeira. Erros do século passado, que perduram. “A construção do aeroporto no meio da Ria Formosa é absolutamente absurdo. Mas isso foi anos 60, nos tempos em que ninguém falava de ambiente e o Algarve era a terra dos figos e das amêndoas”, lembra o geólogo da APA/Algarve.

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João Prudêncio

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