Resiliência e gestão musical em tempos de COVID-19

Quando iniciei a minha carreira como cantora interessei-me logo por conhecer os processos que iam desde a criação artística, à viabilização económica, assim como todos os processos inerentes que fazem da arte e da cultura uma legítima profissão. 


Mal acabava de gravar o meu primeiro CD já participava de feiras internacionais que reuniam programadores, editores, distribuidores, agentes e alguns artistas interessados. Logo percebi que havia dois mundos bem distantes e que a qualidade artística em que eu tanto me empenhava não garantia um lugar nas agendas culturais.

A arte e a cultura eram também regidas pelas leis do mercado, pelos interesses económicos, pelas hierarquias. Essa foi uma das primeiras descobertas, ainda que fosse óbvia. 


Tive a sorte de chegar ao Brasil em 2008, no meio de um turbilhão de esperança, onde os editais de apoio à cultura estavam em franca elaboração e os músicos tomavam posse do seu lugar também político. Aí descobri a periferia, de árduo trabalho, mas de enorme encanto, onde os valores eram, sem dúvida, os que desde sempre faziam sentido em minha arte e no meu posicionamento neste mundo. Por aí segui… e foi maravilhoso fazer parte disso. Sempre difícil encontrar um equilíbrio entre pertencer ao mercado, participar dos encontros sem corromper os ideais e ao mesmo tempo numa militância por um lugar mais justo para o viver de música. 


O ano passado recebi um convite para mais um desses encontros, a EXIB Música e eis que passados 10 anos de carreira eu encontrei uma feira, onde as leis são outras, sem dúvida, mais humanas. Foi um sopro de esperança. 


E eles, no meio da pandemia, com os seus projetos adiados, não baixaram os braços mais uma vez e presenteiam-nos agora com um relatório sobre como a classe vive esta crise. Ferramenta de enorme utilidade para encontrar soluções e novos caminhos para estes tempos difíceis. 


Esta semana Adriana Pedret, directora da EXIB Música é minha convidada, fala-nos sobre a resiliência em tempos de Covid-19 e sobre a investigação por ela liderada:

“Quando se escolhe trabalhar com cultura, revela-se também uma disposição especial para ser resiliente. A relação entre a cultura e a economia é a menos normalizada e nós que trabalhamos neste setor, estamos habituados a enfrentar condições adversas que nos levam a ser resilientes, a desenvolver uma capacidade para superar adversidades e sair fortalecidos, seja para empreender o próximo desafio ou insistir no próprio empreendimento.


Empreender na cultura de forma independente é para valentes. São poucas as portas que se abrem, o percurso é duro e apenas se sustenta pela convicção, pelo que muitos projetos bonitos desaparecem antes mesmo de se consolidar, porque não é fácil resistir, mas como disse Peter Drucker “Em todas as histórias de êxito encontrarás alguém que tomou uma decisão corajosa ”.


Na atual crise, o cancelamento de programação e de projetos fez aumentar, ainda mais, essas dificuldades e levou ao limite muitos projetos e organizações.


Assim como muito dos empreendedores, nós, exibproject.org assumimos o adiamento dos nossos projetos e em especial da edição da feira de música Iberoamericana, EXIB Música, que estava prevista para a segunda semana de Junho em Setúbal. A circulação musical, o diálogo intercultural e da diversidade, são chaves para o desenvolvimento de propostas como a EXIB Música, criada como uma experiência de encontro para conectar músicos, promotores, organizações e cidades e onde o factor humano é a principal qualidade para desenvolver redes de colaboração ao redor das músicas iberoamericanas. Face a este novo desafio e perante a grande incerteza instalada como nova realidade, decidimos consultar o sector musical para perceber a sua disposição frente às mudanças que afetam o desenvolvimento da produção artística e a internacionalização, com o objetivo de contribuir para a construção de novas realidades e convencidos de que a resposta emocional, mediante a necessidade de gerar saídas para a crise, influencia consideravelmente nas ações e cumpre um papel principal na tomada de decisões. Motivados por estas considerações e junto a um grupo de profissionais que se uniram desinteressadamente a esta iniciativa, iniciámos no final de abril um processo de consulta ao sector musical, que intitulamos “A internacionalização da diversidade musical em tempos de COVID-19”. Dedicámos pouco mais de dois meses à elaboração dos conteúdos, desenvolvimento técnico, difusão e distribuição, análise de dados, preparação do relatório, até à sua recente publicação, dia 13 de Julho. 


Desde o início estivemos convencidos de que queríamos medir a disposição do sector musical perante a crise e a partir daí, diferentes variáveis associadas. O trabalho foi ganhando forma, graças às contribuições de produtoras cúmplices como Sons Vadios (Portugal), Nero a Metà Productions (Portugal-Brasil), Salto Music (UK), Vozes Mestres (Portugal-Brasil) e IGC (México).

A amostra chegou a 521 formulários completos, o que gerou 15088 respostas provenientes de 144 cidades e 44 países.

Resultado alcançado graças a uma cadeia incrível de difusão nas redes sociais na Europa e América Latina. 


Para a elaboração do relatório convidámos um grupo de profissionais do sector musical, jornalistas especializados em música, promotores, músicos produtores, investigadores de diferentes proveniências como Espanha, Argentina, Portugal, Reino Unido, Áustria, México, Chile e Brasil. 


Da análise retiram-se dados importantes, que esperamos que cheguem às instituições e que sirvam para desenvolver ações de aproximação e de diálogo entre o sector público e a gestão cultural e musical independente. 


A consulta revela uma condição maioritariamente independente do sector musical onde 56 % dos profissionais consultados auto definem-se como autónomos; 77% dedica-se exclusivamente ao sector musical/cultural e perante as adversidades da atual situação, 74% reafirma a sua vontade de dedicar-se em exclusivo à música e à cultura, e 69% identifica oportunidades diante da crise.


Confrontados com a pergunta sobre o aumento dos conteúdos online, 33% considera como uma oportunidade; 28% como estímulo à criatividade e 27% acredita que o aumento de concertos em streaming é uma limitação para perceber a venda de bilhetes. 


A consulta oferece alternativas para salvaguardar a diversidade de músicas tradicionais e patrimoniais, diante das quais as escolhas distribuem-se da seguinte maneira:  25,6% inclinou-se para a necessidade de fortalecer a rede de produção das manifestações de povos e comunidades; 21,8% considera que é necessário repensar espaços de diálogo entre a tradição e o contemporâneo; 21,1% dos consultados optou pela alternativa de brindar oportunidades em grandes eventos e festivais; 16,6% marcou a opção de produzir espaços de reflexão sobre a valorização da diversidade e os 13,5% restantes, se destaca por garantir uma categoria especial para estas músicas nas diversas convocatórias. 


Por último e não menos importante, mais de metade da amostra atribui ao trabalho colaborativo a mais alta valorização como alternativa para o sector. Estes resultados adicionados ao resto que está detalhado no relatório final revelam um elevado sentido de resiliência do sector musical. Um sector que tem acompanhado as medidas de confinamento com altíssima generosidade, integrando à sociedade inumeráveis horas de música, formação, intercâmbio de ideias e muita vontade para identificar saídas para a situação atual.


Os dados são públicos e estão inteiramente à disposição do sector através do endereço EXIB Pulse em exibproject.org.


É um trabalho com financiamento próprio e seria bom pensar que essa capacidade de resiliência do sector musical, e cultural em geral, nos pudesse levar a repensar, a tornar mais sustentáveis os nossos projectos e organizações, construindo novos modelos de solidariedade.

Adriana Pedret – Directora da EXIB Música 

Susana Travassos – Cantora e psicanalista algarvia membro do Centro Português de Psicanálise – Associação Lacaniana Internacional

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