Ricardo Viegas, o único sobrevivente da equipa que lançou o Jornal do Algarve

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O menino à esquerda da imagem é Ricardo Viegas, no dia em que saiu o primeiro número do Jornal do Algarve. Seis décadas depois, recorda esses tempos e como era então Vila Real de Santo António

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Ainda não tinha completado os 14 anos quando começou a trabalhar neste semanário, dois meses antes da saída do primeiro número. O pai queria que aprendesse “um ofício”, mas ele acabou, mais tarde, por escolher a Marinha. Hoje, aos 73 anos, e no ano em que o JA está a completar o seu 60.º aniversário, recorda algumas histórias daqueles tempos e como era Vila Real de Santo António há 60 anos, bem como o seu percurso de vida depois de ter deixado a cidade pombalina

DOMINGOS VIEGAS

Começou a trabalhar no Jornal do Algarve em janeiro de 1957, dois meses antes de ter saído o primeiro número, porque era necessário preparar o lançamento do novo semanário com antecedência. Por este facto, e apesar de, na altura, ainda não ter completado os 14 anos, Ricardo Viegas pode ser considerado o primeiro funcionário do Jornal do Algarve. Aos 73 anos é, também, o único sobrevivente da equipa que pôs em pé este projeto.

“Entrei através do senhor Aurélio, que tinha uma loja perto da Junta de Freguesia, e do senhor José Pereira, que era tesoureiro na câmara municipal. Ambos eram amigos do meu pai. Abria a porta, até à uma da tarde, depois regressava por volta das duas ou das três horas. Era assim. Tinha 14 anos. Naquela altura podia-se trabalhar até com menos idade”, recorda.

Eram tempos difíceis. O pai era de Vila Real de Santo António e a mãe era de Castro Marim, mas Ricardo Viegas acabaria por nascer em Matosinhos, por circunstâncias da vida, já que o progenitor era pescador e, naquela altura, a família encontrava-se no norte do país. Mas acabariam por regressar logo após o nascimento do filho Ricardo.
Concluiu a antiga 4.ª classe (hoje 4.º ano do ensino básico), mas não prosseguiu os estudos. “O meu pai queria que eu tivesse uma profissão, mas com a quarta classe não era fácil”, conta. Surgiu então a possibilidade de começar a trabalhar no Jornal do Algarve, onde, além de abrir e fechar a porta, aprendeu a escrever à máquina, uma aprendizagem que lhe seria de grande utilidade, alguns tempos depois, quando ingressou na Marinha.

“Aprendi com o senhor Emílio. Aliás, ele e o senhor Garcia, que era empregado de escritório na Fábrica Folque, deram muito ao Jornal do Algarve. Deram muitas horas, quando saíam dos seus empregos. Eram eles que escreviam, à máquina, semanalmente, os endereços dos assinantes. Eu, depois, recortava-os. Era tudo feito à mão. Muitas vezes, saíamos já depois da meia noite, para conseguir preparar os endereços e para que o jornal chegasse a todos os assinantes… E naquela altura já eram muitos”, explica Ricardo Viegas.

Se hoje já é difícil começar e pôr em pé o projeto de um órgão de comunicação, naquela altura as coisas eram muito mais complicadas, principalmente, em termos financeiros. “Ao princípio não havia dinheiro. Havia muita vontade e muito trabalho, mas não havia dinheiro. Só comecei a receber alguma coisa depois de ter saído o segundo número do jornal. Não me recordo quanto, mas foi pouco. Muito pouco”, lembra.

O truque da pasta para “fintar” a PIDE

Apesar das dificuldades, Ricardo Viegas garante que guarda “boas recordações” daquela altura. E também algumas histórias curiosas desses primeiros tempos do Jornal do Algarve, algumas delas relacionadas com o diretor e fundador, José Barão, e com a autêntica “marcação cerrada” que lhe era feita pelo antigo regime, através do Serviço de Censura e da própria PIDE.

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José Barão vinha de Lisboa, de comboio, e, naquela altura, em Vila Real de Santo António havia duas paragens: a estação principal e, menos de dois quilómetros mais à frente, o apeadeiro localizado mais perto do centro da, então, vila e que representava o efetivo fim da linha. Este facto era aproveitado por José Barão para fazer sair do comboio, na primeira paragem, alguma informação e documentação mais sensível que trouxesse consigo.

“No Jornal diziam-me: Ricardo! Pega na bicicleta e vai buscar uma encomenda à estação. Quando chegava, aparecia um revisor da CP, de óculos escuros, que me perguntava: És tu que vens do jornal? Eu respondia afirmativamente e ele dava-me uma pasta e dizia-me para levar aquilo depressa até à redação. O senhor José Barão continuava até ao apeadeiro, com uma outra pasta que, evidentemente, não tinha nada de importante. Estavam à espera dele no apeadeiro, mas a mala importante já tinha saído antes.”, conta Ricardo Viegas.

Ainda em relação a José Barão, Ricardo Viegas considera-o “uma pessoa excecional” e “um homem que lutou sempre pelo desenvolvimento do Algarve e para que a região fosse para a frente”, numa altura em que “o Algarve estava muito atrasado em relação aos grandes centros urbanos do país” e “a população vivia muito mal e com muitas dificuldades”.

Dez anos em África

Acabou por sair do Jornal do Algarve alguns meses depois, porque “não tinha ordenado e estava lá para aprender o oficio”, explica, e foi trabalhar como mecânico, “com o Sebastião Roque, na oficina do seu pai, o senhor André Roque”, recorda, onde também não esteve muito tempo.

“Como já tinha cédula marítima, e gostava de pesca, fui para ajudante de motorista marítimo até 1961. Aí, o senhor André Simões, piloto de barra, que era amigo da família, disse para me inscrever como voluntário na Marinha de Guerra Portuguesa e a 8 de setembro de 1961 fui para os Fuzileiros Navais. E lá fiz-me homem, como se costuma dizer. Quando completei os 18 anos já estava em Angola. Só regressava a Vila Real de Santo António de vez em quando.”, conta Ricardo Viegas.

Depois da recruta de Instrução Tática Elementar (ITE) e do curso de Fuzileiros Especiais fez várias comissões em África, nomeadamente em Angola, Cabo Verde e Guiné, sempre como voluntário: “Passei os primeiros dez anos da minha vida adulta em África. Nesse período só estive um Natal em Portugal, foi o de 1965. Até que em 1972 pensei em casar e parei. Casei nesse ano em Almada, com uma filha da terra, onde ainda nasceram os meus dois filhos e onde ainda resido”.

Continuou na Marinha e, mais tarde, depois de passar à reserva, em 1991, iniciou a sua segunda experiência profissional ligada a órgãos de comunicação: “Arranjei trabalho na Editora Abril Morumbi, como chefe de Serviços Gerais, Economato e Transportes, na qual fiquei 13 anos. Vi esta empresa crescer e transformar-se na Controljornal, a ‘holding’ do grupo de comunicação social liderado por Francisco Pinto Balsemão. Também estava lá o doutor Camilo Lourenço, outro filho de Vila Real de Santo António”.

A cidade “não pode viver só do turismo”

Desde 2004, ano em que se reformou definitivamente, que regressa regularmente a Vila Real de Santo António, onde faz parte da Confraria do Atum. “Venho, pelo menos, uma vez por mês durante uma semana para matar saudades da minha querida terra. A minha mulher é de Almada e os meus filhos também nasceram lá, mas eles também adoram Vila Real de Santo António”.

Ricardo Viegas considera que a cidade “está muito diferente” daquilo que foi na altura da sua infância e juventude, há cerca de seis décadas, já que “há muito movimento, mas apenas durante o verão”.

Vila Real de Santo António “morre muito quando acaba o verão”, constata. “Naquela altura as pessoas vinham de outras terras para trabalhar aqui, mas hoje, infelizmente, é ao contrário. Muitos jovens têm que sair para procurar uma vida melhor”, lamenta. Para Ricardo Viegas, é preciso “mais fábricas a trabalhar e mais indústrias”, porque “não se pode viver só do turismo”. E recorda que aquelas “eram as atividades que davam vida a esta terra durante todo o ano”.

“Naquela altura vinham navios de vários países, para carregar cortiça, mármore, conservas e minério que era transportado até aqui desde as Minas de São Domingos. Todos eles com muitos tripulantes. Havia os estivadores que carregavam e descarregavam os navios, havia as profissões ligadas às conservas, mas, também, aquelas desenvolvidas noutras indústrias e noutras atividades relacionadas com o mar. Havia a pesca, a construção naval… Isto dava muito movimento e havia trabalho, que é o principal e o que falta hoje”, refere Ricardo Viegas, resumindo, assim, muitas das atividades que contribuíram para que a cidade pombalina fosse, na altura, um dos maiores polos conserveiros e um dos portos comerciais mais importantes do país.

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