Salário mínimo ainda não dá para mudar a vida deles

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Clarice Rocha, 57 anos, saiu de São Tomé rumo a Portugal há duas décadas. Queria o que todos ambicionamos: uma vida melhor. “Quando aqui cheguei, o país não era assim – havia mais trabalho, vivia-se melhor.”. Hoje, todos os dias são uma luta pela sobrevivência. “Às vezes fica pesado. Às vezes falha pagar a luz, o gás… O dinheiro não chega para tudo.”

Por mês, Clarice leva para casa o salário mínimo – que representa, depois do desconto para a Segurança Social, cerca de €432 – isto até aqui, porque passará a levar quase €450 (o aumento de €20 brutos representa €17,80 líquidos). É com angústia e bolsos apertados que faz as contas. Todos os meses, são €295 para a renda da casa em que vive no Cacém; €50 para o passe social de transportes até ao Lumiar, onde trabalha como empregada das limpezas; e, com os €87 que sobram, tenta equilibrar as contas entre as despesas de gás, luz, alimentação, entre outras. Em alimentação, por exemplo, nem sabe quanto desembolsa. “O que sobra é tão pouco que nem faço contas. Vou comprando o que posso: hoje compro dois quilos de arroz, amanhã um litro de óleo… Vida de pobre é assim.”

Se para uma pessoa este ordenado já poderia parecer insuficiente, para cinco “é muito complicado”. A filha de Clarice, mãe de duas crianças que também vivem na mesma casa, “dá uma pequena ajudinha nas despesas”. Após dois anos no desemprego, conseguiu finalmente encontrar um part time. Já o outro filho, que também lá vive, ainda está à procura de trabalho.

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“Mais €20… nem sei o que dizer. Quando vou às compras, €20 não chegam para nada! Mas claro que não digo que não. É uma ajudinha, não é suficiente, mas agradeço. Dá talvez para comprar o leite aos meus netos.”

Clarice é uma das 350 mil pessoas que, de acordo com dados do Ministério da Segurança Social, recebem o salário mínimo em Portugal. Já poderia estar a receber €500 desde 2011, mas o acordo de concertação social que estabelecia essa meta para esse ano não foi cumprido. Em outubro, irá finalmente ver o seu ordenado aumentar para €505 brutos, na sequência de um acordo negociado entre o governo e os parceiros sociais.

“Sinceramente? Vinte euros não vão mudar nada”

Casada com um português, Aline Gomes vive há quatro anos em Portugal. Desde que chegou, só conseguiu regressar ao Brasil no início deste ano, para visitar a família – nomeadamente o filho, que por lá vive e que tem de sustentar e educar à distância. Todos os meses, foi deixando de parte um pequeno valor, de forma a conseguir atravessar o Atlântico e matar saudades do filho. “Tão cedo não tenho possibilidade de regressar ao Brasil”, lamenta Aline, 30 anos.

“Vinte euros ao fim do mês não vão mudar nada. São €20 a mais, mas os descontos também são maiores”. “Contas feitas, não levamos assim tanto para casa. E eu faço alguma coisa com €17?”, pergunta. “Claro que um euro, dois euros são sempre bem-vindos… Mas não vão mudar a minha vida.”

Aline trabalha e vive no Montijo. Já esteve empregada noutros locais, mas desde há um ano e meio que trabalha como gerente de loja. Pelo menos na prática, porque o seu ordenado e o contrato que assinou com a empresa não refletem isso. “No dia-a-dia trabalho como gerente de loja. Tenho responsabilidades maiores que outros colaboradores, chego a fazer horas extra, sou formada como gerente de loja. Gosto muito do que faço, mas não sou valorizada pelo meu trabalho e ganho o mesmo que trabalhadores com menos responsabilidades que eu.” Disse ao chefe que não queria continuar na mesma situação. “‘Ou continuas assim ou não renovamos o teu contrato’, respondeu-me.”

Ficou com €485, que serão €505. “Sinceramente, se não fosse o meu marido, que leva para casa €800, não teria como pagar as contas. Aquilo que ganho vai praticamente para pagar a renda, de €400.” Fora isso, ainda há despesas com alimentação (€300), seguro de casa, seguro de carro, passe (€92) para os transportes públicos – que o marido tem de utilizar para chegar a Lisboa, onde trabalha -, água, luz, internet… “E ainda tenho um filho no Brasil para sustentar.”

Viver à rasquinha

Desde que o salário mínimo foi implementado em Portugal, em 1974, Irene Pires recebe esse valor. No entanto, aquilo que recebia há 40 anos não era o mesmo que recebe agora, com as atualizações sucessivas do valor do salário mínimo. Hoje, o ordenado mínimo é mais elevado mas, em termos reais e ajustado ao custo de vida, é inferior a 1974. Para Irene, os 485 euros mensais que recebe pelo emprego na Santa Casa da Misericórdia de Portalegre, local onde trabalha há mais de 26 anos, mal chegam para viver.

Sem ajudas do Estado ou da família, os €20 brutos que irão entrar em casa a partir de outubro “são muito bem-vindos”. No entanto, “não são bem vinte euros”, relembra. “Com os descontos [para a Segurança Social], entra menos. Não digo que não é uma ajuda, mas não muda muito no nosso dia-a-dia.”

Em casa vivem quatro pessoas: “Além de mim e do meu marido, tenho ainda a meu cargo uma sobrinha com problemas de saúde e uma irmã com deficiência”. “Eu e o meu marido partilhamos as contas da casa, mas ele também só leva €800 para casa”, a juntar aos seus €432 líquidos. “O dinheiro nem sempre chega. Às vezes vivemos mesmo à rasquinha.”

Para compensar o pouco que recebe, Irene vai fazendo o que ainda lhe é possível aos 56 anos. As horas vagas são aproveitadas o melhor que consegue. “Vou fazendo outras coisas para me safar: trabalhos como empregada doméstica, cozinhar salgados para fora, entre outras. Vou fazendo o que posso.”

Com uma renda de €150, à qual acrescem quase €100 de luz, €50 de gás e €160 em alimentação, fogem €460. A estes acrescem ainda muitos outros gastos, com especial destaque para as despesas de saúde, que no caso da sobrinha representam uma grande fatia. “Por vezes, fico a dever na farmácia e vou pagando à medida que tenho dinheiro.”

“Dá talvez para uma emergência”

Marino Gaspar também sabe o que é viver com o cinto apertado. Não foi sem esforço que finalizou o 12º ano do ensino profissional em ciências informáticas. Para conseguir pagar os estudos, começou a trabalhar aos 15 anos e aos 18, findo o curso, lançou-se no mercado de trabalho. Acabaria por encontrar um lugar como técnico administrativo numa empresa da área da segurança. Desde que aí entrou, recebe o mínimo permitido por lei.

“Há cinco anos que recebo o salário mínimo.” Excluindo este aumento para €505, “não tenho expectativas de ver o meu salário aumentado no futuro”. “O mercado está mal, sei que onde estou não há espaço para evoluir profissionalmente, nem de ter um salário maior.”

Diariamente, percorre mais de 11 quilómetros para se deslocar de Almada, onde vive, para Lisboa, onde trabalha das 9h às 18h. “Trabalhar nesta zona é terrível, porque sou obrigado a fazer aí as compras de alimentação, o que fica muito mais caro. Sem almoços [€5 por dia], gasto €100 por mês em alimentação, para três pessoas adultas”. O que perfaz, no total, cerca de €200 mensais só em alimentação.

Vive em casa da avó, juntamente com um tio, e as despesas da casa são apenas repartidas entre o seu salário e a “reforma pequena” da avó. Da sua parte, os €485 que recebe são divididos “entre a renda de €300”, a alimentação (€200) e “o restante fica para gastos de telemóvel e internet”. “Não sobra dinheiro nenhum ao fim do mês. Mas dá para viver”, principalmente porque não se fica pelo seu ordenado e vai fazendo trabalhos de forma independente, como técnico de informática, para ganhar mais um extra.

O aumento do salário mínimo já a partir de outubro será uma ajuda, mas não resolve dificuldades.”Tenho acompanhado as notícias sobre o aumento do salário mínimo e já fiz as contas: mais €20 por mês dava mais ou menos para um café por dia. Não é muito, dá talvez para uma emergência.”

RE

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