Saúde garantida pelo Estado é um “direito ameaçado”

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Há mais portugueses a afirmarem que as suas necessidades de saúde não são satisfeitas. Por outras palavras, que no Serviço Nacional de Saúde (SNS) não têm acesso aos cuidados que precisam. Este indicador tem registado um “aumento nos últimos anos em Portugal, bem como nos países mais atingidos pela crise”, e consta do mais recente relatório do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), divulgado esta terça-feira.

O documento, “Relatório de Primavera”, analisa o acesso dos cidadãos aos cuidados de saúde durante o primeiro ano de ausência de intervenção externa. Observou as áreas do medicamento, cuidados de saúde por pessoas dependentes no autocuidado, qualidade e segurança e saúde mental.

As dificuldades diagnosticadas no acesso à Saúde, em particular às unidades públicas, levou os investigadores do OPSS a concluírem que “os portugueses ainda têm acesso aos cuidados de saúde estatais, apesar de esse direito estar ameaçado”. O desfecho só não será o pior se “forem acionadas medidas que corrijam muitas das debilidades encontradas”, lê-se.

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Entre os ‘sintomas’ preocupantes da ‘doença’ que atinge o SNS estão a falta de recursos humanos – de médicos no interior e de enfermeiros em termos globais -, de camas – nos hospitais ou nos cuidados continuados -, de medicamentos – nas farmácias e nos próprios hospitais – e até de segurança nos cuidados, com o atraso no cumprimento das recomendações internacionais. São várias as consequências destas lacunas e algumas bem visíveis.

Pior rácio de enfermeiros por médico

Sobre os recursos humanos, a análise do OPSS reafirma o que já vem sido dito em outros relatórios. “Persiste um rácio de médicos/habitante adequado (4,1 por mil habitantes), comparativamente às médias da OCDE (3,4), mas inadequadamente distribuído pelo território, com clara vantagem para as regiões urbanas.”

Já no caso dos enfermeiros, “o número está claramente abaixo da média da OCDE e tem vindo a decrescer, principalmente no SNS”. Isto é, “o rácio enfermeiro/médico (1,4) é dos mais desequilibrados dos países da OCDE, com 2,3 enfermeiros por médico”.

Menos urgências e consultas

Outros sinais negativos são notados logo na maior porta de acesso ao SNS: a urgência. “Analisámos o acesso aos serviços de urgência e concluímos que desde 2010 se tem verificado uma redução da procura, que coincide temporalmente com a alteração das taxas moderadoras.”

Nos centros de saúde também houve uma quebra. Está escrito no relatório que “relativamente ao acesso às consultas constatámos uma diminuição constante nos cuidados de saúde primários desde 2008”. Mais, isto “num cenário em que o número de consultas médicas per capita e por ano é muito inferior à média da OCDE”.

Os investigadores reconhecem, ainda assim, que a diminuição registada nos cuidados primários foi “parcialmente compensada com um ligeiro aumento das consultas médicas domiciliares e um expressivo aumento das consultas domiciliares de enfermagem”.

Privados com mais camas

E o que também aumentou foi o número de camas, mas no sector privado. Na rede pública “constata-se uma contínua redução nos hospitais do SNS e ao mesmo tempo um aumento nos hospitais privados, no contexto de um país em que o rácio de camas por habitante é dos menores da União Europeia”.

Nos cuidados continuados, têm sido criadas mais infraestruturas para apoio a pessoas dependentes, no entanto, ainda não chegam. “Representam menos de 30% das necessidades atuais.”

Último lugar no acesso à inovação

Faltam locais para tratar e também com o que tratar. O acesso aos medicamentos não registou melhoras.

“É evidente uma maior dificuldade por parte do cidadão, quer pela diminuição do seu poder de compra, quer porque os outros intervenientes no circuito do medicamento também enfrentam dificuldades, traduzindo-se em diversos indicadores como, por exemplo, os medicamentos em falta nas farmácias.”

Para agravar a situação, “no acesso à inovação terapêutica, Portugal ocupa os últimos lugares, quer através de ensaios clínicos, quer através de medicamentos de primeira linha comparticipados”.

Utentes com fatura maior

O Estado apoia cada vez menos. “Os encargos do SNS com medicamentos em Portugal continuam a diminuir”, por força de “reduções de preços, redução da comparticipação estatal e crescimento do mercado de genéricos”. Ao invés, os utentes gastam cada vez mais. “As despesas de saúde out of pocket têm vindo a aumentar.” E este agravamento da fatura não é compensado mesmo com um maior número de utentes isentos das taxas moderadoras.

Na perspetiva dos autores do relatório, os portugueses estão a gastar mais em saúde devido à “distribuição desigual dos profissionais pelo território, a diminuição de consultas nos cuidados primários, o enfraquecimento da rede de transportes e as alterações dos transportes não urgentes de doentes”. Em suma, condicionalismos que para muitos doentes implica ter de pagar mais para ter acesso a um médico.

Ministro refém do discurso da resiliência

Ao Expresso, o gabinete de Paulo Macedo não quis fazer comentários às conclusões do “Relatório de Primavera 2015”. Um silêncio que Constantino Sakellarides, professor jubilado da Escola Nacional de Saúde Pública, não estranha. “Imagine-se que dizia que o programa de ajustamento tinha efeitos negativos na Saúde – abriria uma brecha no sucesso dogmático do programa de ajuda. O ministro percebeu que não tinha possibilidade de fazer outro discurso que não seja o da resiliência do SNS.”

Sobre o relatório do OPSS – parceria entre a Escola Nacional de Saúde Pública, o Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra, Universidade de Évora e a Faculdade de Farmácia de Lisboa -, Sakellarides destaca três conclusões: “As dificuldades diminuíram mas não desapareceram; alguns portugueses ainda têm acesso a cuidados de saúde mas outros não; a ausência de análise concertada das várias políticas públicas.”

O especialista em Saúde destaca ainda as conclusões na área da saúde mental. “É um dado tremendo que o intervalo entre o primeiro sintoma de uma depressão major e o início tratamento seja de quatro anos. O estudo mostra que não fizemos bem a desinstitucionalização.”

Constantino Sakallerides está convicto de que “em período pré-eleitoral o ministro da Saúde não vai dizer mais nada, a não ser reagir criticamente ao que o relatório diz”. Ainda assim, deixa um conselho: “Depois vai ser preciso encontrar uma mecanismo que permita fazer uma análise precisa da situação atual da Saúde.” Só com esses dados, garante, “podem surgir respostas inteligentes”.

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