Se o pior ainda se vai saber, devemos levá-lo a sério

ouvir notícia

Greenwald sobre Snowden: “Podia muito bem ser um daqueles cromos de vinte e poucos anos que estamos habituados a ver nas salas de informática das faculdades”

Um programa que regista cada tecla acionada no computador, permitindo acompanhar à distância e em tempo real emails, chats, etc. Outro programa que regista todas as chamadas realizadas e recebidas pela população de um país. Cabos transatlânticos intercetados junto à costa do Reino Unido pelos serviços secretos desse país, captando as comunicações entre a Europa e o resto do mundo. Escutas a líderes europeus e a altos funcionários de instituições internacionais. No passado ano, manchetes sucessivas sobre atividades deste género levadas a cabo pela Agência Nacional de Segurança (a NSA, norte-americana) geraram escândalo e protestos. Agora, o jornalista que maior protagonismo assumiu na história escreveu um livro onde a conta em pormenor. Não toda, porém. Glenn Greenwald tem dito que as piores revelações ainda estão para vir.

A investigação sobre a NSA recebeu o prémio Pulitzer no mês passado. “Sem Esconderijo” (ed. Bertrand), a obra agora publicada, é um testemunho pessoal que reúne e expande aquilo que já se conhece. No capítulo central, “Recolher Tudo”, Greenwald passa 100 páginas a descrever os vários programas de espionagem. Muitos deles têm nomes ameaçadores ou bizarros: X-KEYSCORE, STORMBREW, BOUNDLESS INFORMANT, TEMPORA, MYSTIC, PRISM e (um favorito do autor) EGOTISTICAL GIRAFFE. O objetivo é sempre captar e armazenar as comunicações privadas entre cidadãos. As descrições são acompanhadas de quadros explicativos produzidos pela própria NSA para consumo interno. Muitos aliam uma apresentação aparentemente neutra de dados a referências entusiásticas por vezes em tom coloquial.

O entusiasmo tem parceiros. Quatro países de língua inglesa colaboraram com os Estados Unidos num sistema global de espionagem alcunhado ‘Five Eyes’, ou Cinco Olhos: além do Reino Unido, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia. (Entre os cinco vigora um pacto de não espionagem mútua que os EUA recusam estender a outros aliados.) Numa visita ao GCHQ, equivalente britânico da NSA, o então chefe desta última, o general Keith Alexander, terá perguntado se não era possível captar absolutamente tudo – todas as comunicações eletrónicas do mundo inteiro. Greenwald conta que Alexander, já durante o seu comando no Iraque, tentava recolher a totalidade dos SMS, email e comunicações de voz entre os cidadãos. Mas aí havia uma guerra, envolvendo rebeldes misturados com a população. Aplicar os mesmos instrumentos a nações em paz, e aos próprios americanos, levanta problemas diferentes. A quarta emenda da Constituição americana garante proteção contra buscas não justificadas e Greenwald diz que é exatamente isso o que a NSA faz.

- Publicidade -

Ar de cromo, conhecimento de elite

Quando a história lhe chegou, Greenwald não a reconheceu logo. Antigo advogado especialista em casos de direitos civis, tornara-se jornalista para ter maior efeito no mundo e abrira um blogue em 2005. Pouco depois, as revelações de que a administração Bush estava a escutar as comunicações telefónicas dos americanos forneceram-lhe, como explica, “a convergência perfeita entre as minhas paixões e os meus conhecimentos” – isto é, o tema para uma campanha pública. O seu blogue (que da revista online Slate transitou para o diário Guardian), bem como um livro que a seguir escreveu, deram-lhe alguma notoriedade junto dos interessados nesses assuntos. Para um jovem analista informático de empresas subcontratadas pela NSA que resolvera denunciar publicamente o que sabia, Greenwald era uma escolha natural.

Sob o pseudónimo de Cincinnatus, Edward Snowden enviou-lhe uma mensagem a solicitar uma conversa confidencial na Internet. Greenwald não ligou à mensagem, nem a outras que vieram a seguir. Snowden decidiu então contactar Laura Poitras, uma realizadora de documentários que se tinha mudado para Berlim. Tal como Greenwald, com quem colaborava, Poitras dedicava-se a reportar abusos de poder pelo governo, em especial no Iraque. Um dos seus filmes valera-lhe passar a ser revistada sempre que voltava aos EUA. Era claramente mal vista a nível oficial e isso dava-lhe credibilidade valiosa para Snowden, numa altura em que ele já tinha copiado imensa informação confidencial e receava ser preso antes de poder começar a denunciar.

Poitras contactou Greenwald e os dois passaram a comunicar com Snowden. Nessa altura, ele pouco lhes dizia sobre si mesmo. As informações que tinha e o género de reflexões que fazia tinham-nos levado a pensar que se trataria de alguém na meia-idade. Quando um dia se encontraram finalmente com Snowden em Hong-Kong, ficaram surpreendidos por ser tão novo. Aquele homem com um cubo de Rubik nas mãos – o sinal combinado – “tinha 29 anos na altura, mas parecia bastante mais novo, usava t-shirt branca com letras sumidas, calças de ganga e óculos de massa. Tinha uma pêra muito rala já com alguns dias, mas parecia que só há pouco tempo se começara a barbear. A sua aparência era cuidada, com uma postura firme, quase militar, mas bastante magro e pálido”, escreve Greenwald. “Podia muito bem ser um daqueles cromos de vinte e poucos anos que estamos habituados a ver nas salas de informática das faculdades.”

Snowden estava obcecado com segurança e tinha razões para isso. Consciente de ter deixado traços comprometedores nas empresas onde trabalhara – ele diz que podia esconder facilmente o seu rasto, mas não quis arranjar problemas a colegas -, pedira uma licença por doença e fora-se embora. Embarcara para um lugar que não devia despertar suspeitas e onde o governo americano não o podia ir buscar diretamente. Mas instalou-se num hotel com o seu nome e pagou com o seu próprio cartão de crédito. Esteve sempre localizável. Meses depois, quando já se tornara célebre, o governo americano quase conseguiu a sua extradição. Talvez só as informações que então fez sair sobre espionagem da NSA a instituições chinesas lhe tenham valido ser enviado para a Rússia, onde obteria asilo temporário.

O terrorismo: temor real, pretexto surreal

A conversa inicial de junho entre Snowden e os outros três – além de Greenwald e Poitras, havia um editor sénior enviado a Hong-Kong pelo Guardian, dada a importância da história – foi no seu quarto de hotel. Poitras começou logo a filmar e a entrevista seria vista no mundo inteiro. Sobre o material fornecido, Greenwald não hesita: “No seu todo, o arquivo de Snowden conduzia, em última análise, a uma simples conclusão: o governo norte-americano tinha construído um sistema cujo objetivo era a total extinção da privacidade eletrónica em todo o mundo. Este era, sem exagero, o objetivo literal e explícito do Estado-vigilância: recolher, armazenar, controlar e analisar todas as comunicações eletrónicas entre pessoas por todo o globo. A agência tem em vista uma missão transversal: assegurar que nem a mais pequena comunicação eletrónica escapa ao seu sistema”.

Embora o sistema tivesse tido o seu desenvolvimento gigante após o 11 de Setembro, para compensar as deficiências de informação anteriores, Greenwald diz que o terrorismo funcionou largamente como pretexto. “Era evidente que uma considerável quantidade de programas não tinha nada que ver com segurança nacional”, escreve. “Os documentos não deixavam qualquer margem para dúvidas de que a NSA estava envolvida em espionagem económica, espionagem diplomática e vigilância aleatória de populações alheias.” A essa lista de motivações oficiais, ele acrescenta um desejo de controlar a dissidência política. E refere a espionagem do FBI a figuras como Martin Luther King.

Quanto à recolha de meta-informação (dados sobre quem comunicou com quem, sem transcrição das conversas), ao contrário do que as autoridades tentam fazer crer, é uma intromissão grave na vida privada. Basta pensar numa adolescente que telefona para uma clínica que faz abortos ou num homem que consulta um médico especialista em HIV. “O que tornou a Internet tão apelativa foi precisamente o facto de esta nos permitir falar e agir sob anonimato – algo fundamental à exploração individual”, diz.

A falácia inerente à reportagem objetiva

Quando há meses o seu namorado David Miranda foi detido no aeroporto londrino de Heathrow e submetido a nove horas de interrogatório contínuo e à devassa de todos os aparelhos que trazia consigo, Greenwald ficou furioso. Miranda ia-lhe levar materiais de Poitras e alguém o comparou aos ‘correios’ da droga, cúmplices numa atividade ilegal e perigosa. As autoridades preferiram invocar uma lei anti-antiterrorista, estratagema que mesmo antigos ministros do Interior criticaram.

Greenwald conta o episódio em detalhe no livro, reservando uma fúria especial para os jornalistas que se põem do lado das autoridades. Diz nomes, chama a atenção para o perigo de equiparar jornalismo e terrorismo e lamenta “a falácia inerente à reportagem objetiva”, que “quase nunca é aplicada de forma consistente pelos que creem nela”.

“Sem Esconderijo” é o livro de um ativista. Ocupa-se de questões que não são a preto-e-branco mas surgem apresentadas dessa forma. Tem muitas observações pertinentes. Por exemplo, diz que o governo americano continua sem citar um único caso concreto de um plano terrorista que as revelações de Snowden tenham beneficiado ou de uma ação anti-terrorista que tenham impedido. Pode-se discordar do autor ou até do júri do Pulitzer, mas é um documento histórico. Hoje em dia, Greenwald saiu dos jornais para um projeto jornalístico novo, onde continuará os seus esforços. Se ele diz que o pior ainda se vai saber, devemos levá-lo a sério.

RE

- Publicidade -
spot_imgspot_img

Deixe um comentário

+Notícias

Exclusivos

Deixe um comentário

Por favor digite o seu comentário!
Por favor, digite o seu nome

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.