Os vizinhos contam que foi assim – “Aí há uns três anos, isto era uma terra aberta, sem valados nem extremas à vista. Certa manhã surgiu um portão a marcar uma entrada. Como não havia paredes nem bardas, o portão ficou pendurado em nada, e assim permaneceu durante algum tempo. Passados uns meses, surgiu uma baixada que forneceria eletricidade ao descampado com portão. Algum tempo mais, e surgiram uns buracos no terreno. E, certa manhã, um grande camião chegou com uma casa em cima e despejou-a em frente aos buracos. Os rapazes que a despejaram são os mesmos que já despejaram dezenas delas nas redondezas. O dono desta, ninguém sabe quem é. Consta que a Câmara levantou uns autos, mas o assunto só será resolvido lá para 2035. Entretanto, pela noite, alguém veio fazer jardim e plantar árvores. Mas gente que a habite, essa ainda não se viu.
E quem poderá ser? – Perguntei. “Pode pertencer a um pobre imigrante que não tenha casa onde morar, e pode pertencer a alguém que esteja a fazer negócio com casinhas de madeira espalhadas por aí, para alugar ao pobre imigrante, levando-lhe, a cada mês, mais de metade do seu salário. Ou pode pertencer a um estrangeiro que tenha a casinha aqui, por capricho, e só cá venha quinze dias por ano, mas cumpre o seu sonho, ter uma morada sob o céu azul do Algarve. E pode ser, simplesmente, alguém que não precisa de casa, que até dispõe de várias, mas quer construir para ver no que dá, zombando das contraordenações e fiada na ineficácia da justiça.”
Passei pela dita “casa”, e lá está, confirma-se. Não parece habitada, mas tem jardim e árvores plantadas de fresco. Quem a colocou sabe como se faz. Caminhando uns metros mais, encontra-se outra barraca em forma de casa, mas essa já está murada, e na portada até já lá estão dois grandes leões de pedra. Percebe-se que se entrou em território de clandestinidade. Que causas existem para este desordenamento territorial? Várias – Falta legislação eficaz e adequada, ou falta vontade em fazê-la cumprir, e, sobretudo, falta uma política de habitação equilibrada para uma população que vive entre sazonalidade e imigração. Habitação para jovens, habitação para quem chega e quer trabalhar, além de que há localidades onde as casas devolutas são mais do que as ocupadas.
Consta que Governo central e autarquias estão a pôr mãos à obra. Há notícias de que se deu início no Algarve ao incremento em habitações sociais. Há chaves que estão a ser entregues, há várias que vão ser em breve posta nas mãos de novos proprietários. Sobre o assunto, parece haver vários projetos em marcha. É uma felicidade saber que se inicia um programa que tem em conta a habitação com justiça e dignidade. Mas esse é um plano que responde à carência, por certo não fará levantar do território este tipo de urbanização selvagem. Ou querem deixar que o Algarve interior crie, por colinas e planícies, novas “Ilhas de Faro”? Que tenha de vir um programa qualquer da Europa, lá para 2040, derrubar a camartelo este tipo de construção?
Por certo que enquanto escrevo esta crónica, estará alguém, a levantar uma cerca à mais recente casinha de madeira. Amanhã, talvez já lá estejam dois leõezinhos de pedra. Rápido e eficaz. Ora vejam só o que não sofreria quem quisesse levantar uma casa de tijolo e telha! Levaria quase tanto tempo a obter licenças e a responder a quesitos, do que os responsáveis pelas barracas e terem notícia dos autos. Em tempos românticos, Goethe escreveu a frase imorredoira – “Plantei a minha casa sobre o nada, por isso o mundo inteiro é meu”. Agora, em tempos mais concertos e com mentes mais realistas, podemos dizer – “Plantei a minha casa fora da lei, por isso o mundo inteiro é meu”. Ou como dizia um outro dono de uma casinha dessas – “Ela já lá está. Tentem pegar-me por aqui, pela sola dos meus sapatos”.
Vêm aí as autárquicas. Será que vai tudo ficar como está?
Flagrante cansaço: De certas palavras: resiliência, empoderamento, implementação, narrativa, alavancagem, engajar, performante e… etcetrizar. Já basta!
Carlos Albino