Tão perto e tão longe

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O Jornal do Algarve faz retrato atual de um Algarve “invisível” onde os anos passam e tudo fica (quase) na mesma.

Longe da vista mas perto do coração do Algarve, existem pequenas aldeias e povoados completamente escondidos nas serras e encostas do interior. Há mesmo lugares em que a população não ultrapassa uma dúzia de pessoas. O JA abre esta semana a porta a este Algarve “invisível”, onde o número de habitantes tem vindo a diminuir a olhos vistos, mas onde encontramos a identidade de uma região que voltou as costas ao mundo rural e vive agora apenas virada para o mar. Porém, a crise que se abate sobre a região pode ser uma oportunidade para um regresso dos algarvios às suas origens.

 

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A falta de empregos e investimentos, assim como a distância para os serviços de saúde e escolas, não convidam a escolher as aldeias e pequenas localidades do interior algarvio para morar.

A maioria destes lugares continua a viver em condições de antigamente e muitos aguardam ainda por intervenções que outras povoações, nomeadamente perto do litoral, já beneficiam há vários anos.

Mas são estas aldeias e sítios perdidos no interior algarvio, sem qualquer referência nos mapas nem placas de informação, que, apesar de cada vez mais desertificados e abandonados, preservam as verdadeiras origens do Algarve e a sua identidade.

Um exemplo dessas povoações em que as condições ainda são “à moda antiga” é a Cascalheira, que não passa hoje de uma pequena rua, ladeada por meia dúzia de casas e uma antiga escola em ruínas, que serpenteia o vale recortado da serra de Monchique.

Trata-se de um povoado – mais próximo do Alentejo do que das praias algarvias – onde sempre se praticou agricultura de subsistência e que já teve 28 alunos há cerca de quarenta anos. Hoje, a Cascalheira é a imagem da sua antiga escola (encerrada em 1973), abandonada à sua sorte, com apenas 12 habitantes, quase todos idosos.

Longe da confusão e do rebuliço do litoral algarvio, esta povoação perdida no coração da região é o espelho do mundo rural que ainda resta no Algarve. Uma cabra amarrada à beira da estrada, galinhas à solta a bicarem o chão, gatos e cães a comer do mesmo prato como se fossem os melhores amigos, assim como as chaves do lado de fora das portas, denunciam logo que estamos mesmo no “outro” Algarve.

Afortunado por ter um pedaço de terra

Luís Barbas Nunes, de 59 anos de idade, é natural da Cascalheira, onde vive com a mulher. “Só saí daqui três anos para ir para a guerra na Guiné”, conta ao JA, explicando que “é a amizade das pessoas e esta linda paisagem” que o amarram a esta terra onde os anos passam e tudo continua na mesma.

“Não é bem assim”, interrompe. “Com o passar dos anos as mudanças não têm sido para melhor”, queixa-se o habitante, referindo-se ao abandono das casas de pedra e dos campos agrícolas.

Nos últimos trinta anos, Luís Barbas Nunes e os vizinhos de idade avançada testemunharam o esvaziamento do interior algarvio pela população ativa, porque “já ninguém se quer sujeitar às incertezas da vida rural”. “Inevitavelmente, com a evolução dos tempos, os mais jovens foram trabalhar e constituir família para Portimão, Odemira, Lisboa e até para o estrangeiro”, revela.

Apesar de tudo, Luís e a mulher são felizes na Cascalheira e até dizem que não sentem falta de nada. “Só temos pena que tudo isto à nossa volta, que já foi cultivado até perder de vista, agora esteja abandonado”, lamenta, apontando o dedo em redor do povoado.

Nestes tempos em que a crise está a sufocar muitos algarvios, Luís Barbas Nunes considera-se “afortunado” por ter um pedaço de terra. “Se contasse apenas com a minha pequena reforma estava tramado e provavelmente não tinha o que comer. Graças à minha horta, não passamos fome. O pior é aquelas pessoas nas cidades”, afirma.

Agricultura tem tudo para voltar em força ao interior

Todos na Cascalheira possuem uma parcela de terreno onde cultivam batatas, ervilhas, tomates, feijão, batatas-doce, pimentos, cebolas, couves, amendoins, entre muitos outros produtos.

Segundo os habitantes, a atividade agrícola tem tudo para voltar a resultar no interior algarvio, até porque, acentuam, os campos estavam todos cultivados há 50 anos e continuam “muito férteis”.

“Deviam incentivar a população das cidades, nomeadamente os desempregados, a trabalhar na agricultura, porque antigamente tudo era cultivado e ninguém passava fome por estas bandas”, frisa Luís Barbas Nunes.

Quem seguiu o conselho do algarvio foi o apicultor alemão Walter Gogel, de 46 anos, que vive com a mulher (francesa) e três filhos na Cascalheira. São, de resto, os mais jovens da povoação e foram recebidos de braços abertos pelos idosos locais, que já não viam crianças a brincar naquela rua há décadas.

A entrevista ao casal começou com a pergunta da praxe: O que os trouxe ao Algarve? E porque escolheram o interior e não o litoral? À primeira pergunta responderam “foi o destino”. “A Marie fechou os olhos e apontou à sorte com o dedo no mapa. Calhou Portugal. Depois, como gostamos de sol, optámos pelo Algarve”, recordam.

Quanto à escolha de Monchique, e mais concretamente o sítio da Cascalheira, o casal tem uma explicação mais profunda: “Queríamos voltar a viver segundo os valores humanos, fugir do consumismo, desistir das coisas supérfluas e abraçar uma nova vida ligada à agricultura biológica”, adianta Walter Gobel, que acaba de comprar um terreno que pretende cultivar para “alcançar a autonomia e não precisar de comprar nada nos supermercados”. “Assim, a minha família pode comer melhor e mais saudável. Mesmo com pouco dinheiro, tenho a certeza de que não vamos passar fome”, salienta o alemão, num perfeito português do Brasil, depois de ter passado uma década do outro lado do Atlântico.

Oportunidade para voltar à terra

A vinda do casal e dos três filhos para a Cascalheira não tem nada a ver com o ideal romântico de aldeia perdida no meio da natureza, pelo contrário, acentuam prontamente. “Viemos atrás da vida real – trabalhar na terra – e de valores como a amizade, o amor, a solidariedade, a honestidade e a partilha”, sublinha Walter Gobel, frisando que “estes valores têm origens nas pequenas aldeias e foram completamente esquecidos nas grandes cidades”.

E Walter Gobel dá um exemplo bem atual: “Se uma pessoa morre num prédio, é provável que só deem pela sua falta cinco meses depois. Aqui, se a vizinha não aparece durante um ou dois dias, alguém vai à porta saber o que se passa. São estes valores que valem mais do que qualquer dinheiro”, refere.

Segundo o apicultor alemão, a crise que o país atravessa é uma grande oportunidade para os mais jovens regressarem às terras dos pais e dedicarem-se à agricultura. “Se isso não acontecer muito em breve, temo que muito conhecimento que sempre passou de geração em geração se perca”, adverte Walter, acrescentando que, “hoje em dia, os mais novos não sabem semear nem plantar alimentos. E é isso que torna esta crise muito mais grave”.

Em Monchique, assim como noutras zonas rurais do Algarve, os habitantes acreditam que ainda é possível recuperar a agricultura. No caso de Monchique, recordam que, em 1960, o concelho tinha 15 mil habitantes (hoje não passam dos seis mil) e era um dos mais ricos e abastados a nível agrícola. “Havia batatas e cereais de sobra até aos telhados dos armazéns”, recorda a população, lamentando que, nos tempos que correm, “as batatas vêm de Espanha, assim como os morangos e uma série de produtos hortícolas, e a farinha também tem de ser importada!”.

Nuno Couto/Jornal do Algarve
Foto: João Porfírio
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1 COMENTÁRIO

  1. Espero que os jovens da região percebam que é mesmo uma oportunidade porque o desemprego aumenta a nível geral mas aumentou depois de 2003 em Monchique para pessoas relativamente novas.
    Aproveitem porque podem de facto não vir a ter muito dinheiro mas certamente terão qualidade de de

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