Tavira: A cidade das igrejas

Há praticamente uma igreja para cada mil tavirenses. É a cidade algarvia com mais templos católicos. Um caso único a sul do Tejo. Fomos saber que monumentos são esses, qual o seu estado de conservação, conhecer o seu passado e futuro. Indagar porque serão tantos afinal. E ficámos tão surpreendidos como o leitor porventura ficará com algumas das respostas que obtivemos

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A conversa decorre no interior da Igreja de Santa Maria do Castelo, bem no centro de Tavira, entre barulhos esparsos que os oito técnicos de várias nacionalidades, que por ali aprimoram o espaço em volta, não conseguem evitar.

Considerada uma das obras maiores e mais significativas de entre os 21 templos católicos da cidade – entre igrejas, capelas, ermidas e conventos – a que se juntam, nos arredores, Santa Luzia, Luz, Conceição, Santo Estêvão, Santa Catarina e Cachopo num total de 25 templos, a Igreja de Santa Maria é considerada o monumento fundador da presença cristã na cidade, a única de entre todas classificada como “monumento de interesse nacional”, que remonta ao ano da reconquista da cidade, 1242. De facto, é mais antiga ainda: “Esta igreja reúne 4 a 5 estilos de construção diferentes, edificada em cima da mesquita maior, construída durante a presença árabe, que tinha a torre de chamamento para o culto. Mais tarde seria substituída pela torre do relógio, construída após o terramoto, que foi oferta do alcaide de Tavira, em 1809”, anuncia à nossa reportagem o especialista Filipe Teles, 40 anos, um dos líderes dos trabalhos que ali decorrem.

A seu lado, a restauradora Marta Pereira, 45 anos, sublinha que aquela é a única das 21 igrejas tavirenses nesta altura em fase de restauro: “Esta obra tem tudo para correr bem. Mais do que a parte estética, estamos preocupados com a conservação. Os trabalhos estarão concluídos em dezembro de 2023, começou em dezembro passado”.

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Mas na cidade algarvia das igrejas, a povoação com maior número de templos católicos seculares em toda a região, muito está ainda por fazer em matéria de recuperação do património: “A degradação das 14 igrejas que são património da paróquia é de 80%. Por outro lado, os templos de S Sebastião, São Roque, Igreja das Ondas, todas do Estado, não precisam de restauro”, anuncia Filipe Teles.

Igreja Matriz de Santa Maria e Igreja Matriz de Santiago

Tantas, que algumas se transformaram em hotéis

Quanto às quatro igrejas geridas por ordens religiosas, a do Carmo (gerida pela Ordem Terceira do Carmo) está bem conservada, a da Misericórdia e do Espírito Santo ou S. José (ambas geridas pela Misericórdia) também. No extremo oposto das necessidades de recuperação, há uma igreja de Ordem religiosa a precisar de obras e que, uma vez recuperada, teria um grande potencial de visitação: São Francisco, da Ordem dos Franciscanos.
Na miríade de igrejas que constituem o património arquitetónico religioso tavirense, além das 14 da paróquia e das quatro das ordens religiosas, há três capelas na posse do Município: a Igreja das Ondas, a de S. Sebastião e a de São Roque.
Há ainda casos particulares, como os imóveis que foram cedidos pelo Estado a entidades terceiras. É o caso do Convento das Bernardas, transformado em residencial de luxo e o Convento da Graça, onde hoje funciona uma pousada da Enatur. Mas essas, destinadas, pelo menos por ora, a fins comerciais e turísticos, caem fora da nossa contabilidade.
Graças ao padre Miguel Neto – que decidiu restaurar o património religioso local, a começar pela Matriz de Santa Maria – e à empresa Artgilão, as 21 igrejas estão no início da caminhada da sua recuperação.
Na maior parte delas não há qualquer culto religioso e a maioria estão fechadas, até para simples visitas turísticas, mas o projeto do padre Miguel Neto e da sua paróquia abrange que se escancarem as portas dos templos.
“O projeto Artgilão vem com esse objetivo de abrir as igrejas. Tem estado em crescendo o turismo religioso e é um facto com que os turistas se deparam é quererem visitar os monumentos e eles estão maioritariamente fechados”, lamenta Filipe Teles.
“A partir de 2017 cria-se a Artgilão e as igrejas começaram a abrir. A Artgilão é para as 14 igrejas da Paróquia e limita-se a elas. Neste momento temos abertas as igrejas de Santa Maria, Santiago (ano inteiro), no verão abrimos a igreja de São Paulo e este ano vamos abrir a igreja de Santo António do Alto”, esmiúça, contabilizando que este ano há quatro abertas o ano inteiro, antes eram três, agora será mais a de Santo António do Alto, também chamada Atalia”.

Estes dois imóveis foram cedidos pelo Estado a entidades terceiras. O Convento das Bernardas, foi transformado em residencial de luxo e no Convento da Graça, hoje funciona uma pousada da Enatur

Da devoção medieval ao liberalismo

Contudo, cerca de metade do total ficarão fechadas, 9 ou 10 igrejas. Algumas delas são abertas esporadicamente em cultos festivos ou romarias. A maior parte são capelas. A mais esplendorosa é a de Santa Maria, agora em obras e onde o público pode assistir ao restauro.
Mas porquê tantas igrejas numa cidade com escassos 24 mil habitantes?
“Há quem diga que a razão para tanta igreja são as conquistas aos árabes, conquistava-se algo, edificava-se uma igreja. Eu não concordo com essa teoria. Acredito sim que no século XVI havia uma grande expansão económica e todos os estratos sociais tinham devoções, como os pescadores, que encontraram a figura de uma santa numas redes e edificaram uma igreja, a que chamaram das ondas”, enuncia Filipe Teles.
Se Tavira tem tantas igrejas é porque ocupou um lugar de destaque na região, explica por seu turno o historiador de arte Daniel Santana, que durante mais de duas décadas conviveu profissionalmente com o património histórico de Tavira.
“Desde que foi conquistada aos mouros, em 1242, até à implantação do liberalismo em 1834, a evolução e expansão urbana foi pontuada pela igreja. Mas há um período que proporciona condições extraordinárias para que a cidade se desenvolvesse e houvesse mais arquitetura religiosa. Do século XV e meados do século XVI foi o período dos descobrimentos e expansão, em que o porto de Tavira era o maior do Algarve, para defesa e manutenção das praças lusas do norte de África”, acentua o especialista.

Igreja de S. Paulo, Igreja do antigo Convento de Stº António dos Capuchos e Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo

Quando Tavira era a principal cidade

Salienta, por outro lado, que Tavira era a entrada para o norte de África, onde os portugueses conquistaram várias praças, como Ceuta e Tânger. “Tavira passou a ser um dos três principais portos do país. Dá-se então a expansão demográfica e urbanística da cidade, de meados do século XV a meados do XVI. Tavira em 1535 tinha 14.500 habitantes, o que fazia de Tavira a cidade mais populosa do Algarve. Os cronistas chamavam-na a principal do reino do Algarve”, salienta Daniel Santana.
Nessa altura havia condições de mentalidade para que as igrejas se construíssem, pelas mãos das paróquias, irmandades e ordens religiosas, A Nobreza instala-se na cidade e havia confrarias. Um exemplo de abnegação religiosa: em 1509 Manuel I funda o convento das Bernardas por um voto religioso pelo levantamento de um cerco em Arzila. Outro exemplo: o convento de Santo Agostinho ou da Graça resulta do abandono de um convento que tinha sido fundado em Azamor e os frades que de lá retornaram encontram em Tavira a porta mais próxima de passagem para o reino. “O local ideal para refundar o convento abandonado em Azamor. Portanto o Norte de África foi fundamental para o legado arquitetónico religioso de Tavira”, explica o historiador.
No século XVIII, durante o chamado período barroco, há uma nova febre construtiva de grande importância. Todas as igrejas sofreram remodelações nesse período. A Igreja da Ordem Terceira do Carmo é uma fundação nova desse período, em pleno século XVII, o de Santo António também. A cidade nunca fica estagnada até finais do século XVIII.
O barlavento foi muito mais afetado do que o sotavento no Algarve pelo sismo, que pouco afeta as igrejas da cidade sotaventina. Dom Francisco Gomes do Avelar (1739 e 1816) deixou marca na região. Fica Bispo do Algarve em 1789. Inicia a recuperação de muitas igrejas, entre elas a de Santa Maria, nos finais do século XVIII. Manda vir o Francisco Xavier Fabri, que vai ser o autor da reconstrução de igrejas no Algarve.
“Para além das 21 que tem agora, já teve mais. Há algumas que são secularizadas [entregues ao Estado], quando chega o liberalismo e os sentimentos anti-clericais do século XIX, que culminam na época da república com a lei da separação do Estado da Igreja e a nacionalização de todos os bens da Igreja”, conclui.

João Prudêncio

Igrejas das freguesias de Sta Luzia, N. Sra Conceição, N. Sra da Luz, Santo Estêvão, Sta Catarina da Fonte do Bispo e Sto Estêvão (Cachopo)

Vinte templos seculares e um milenar

Matriz de Santa Maria do Castelo

Cada uma das igrejas vale por si e tem valor, mas de entre o património histórico da cidade do Gilão há umas 3 ou 4 ou mais que se destacam: a mais imponente é a Matriz de Santa Maria, antiga mesquita, antes do século XIII. Tinha sepulcros, autênticos cemitérios de gente importante, como ocorria nos templos da época. Há também a da Misericórdia, o melhor exemplo do renascimento no Algarve. E Nossa Senhora do Carmo, exemplo do barroco e do rococó.
“Em Tavira podemos saltar de umas épocas estilísticas para as outras. Podemos fazer uma aula de história da arte em Tavira”, jura o historiador de arte Daniel Santana.
“Há seis antigos conventos (extintas as ordens religiosas em 1834, foram nacionalizados), Santa Maria e Santiago são as duas matrizes. A maioria das ermidas deixaram de ser ermidas porque deixaram de estar num ermo e passaram a capelas. E havia as ermidas de Santana, São Sebastião, São Lázaro, São Brás, Capela de NS da Consolação, Ermida de São Pedro, Capela da Piedade (junto ao rio)”, conclui.
Mas a igreja de Santa Maria do Castelo é de outra época e tem uma história milenar. Tal como se apresenta, genericamente, data da reconquista de 1242. Tem traços de vários estilos arquitetónicos. Do gótico ao manuelino (1500, 1600) e depois do terramoto, o arquiteto de Bergamo Francisco Fabri, convidado por Dom Francisco Gomes de Avelar, engloba o estilo italiano e o estilo pessoal do próprio técnico transalpino. “Aqui encontramos, portanto, gótico, barroco, manuelino e neoclássico”, sintetiza Filipe Teles.
Em dezembro de 2021 foi assinado um protocolo entre a diocese, CCDR, IEFP e RTA em que foi criado um curso de turismo religioso a decorrer no IEFP e a formar pessoas para que elas possam enquadrar a abertura das igrejas. A nossa cicerone Marta Pereira, uma das técnicas que trabalha na Igreja de Santa Maria, é uma das formadoras desse curso.
J.P.

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