Todos os homens de Putin: registos secretos revelam rede de dinheiro ligada a líder russo

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Vladimir Putin e Sergey Roldugin forjaram uma amizade forte na juventude. Inseparáveis, quase irmãos, palmilhavam juntos as ruas de Leninegrado, hoje São Petersburgo, cantado, e, ocasionalmente, no caso de Putin, comprando umas rixas pelo meio.

Enquanto Putin traçava o seu caminho até líder supremo da Rússia, Roldugin tornara-se violoncelista clássico e maestro, mas os dois homens permaneceram amigos. Roldugin era presença assídua na residência oficial de Putin, onde muitas vezes atuou tanto para Putin como para os seus convidados. Assídua também foi sempre a sua presença nos meios de comunicação social, onde aproveita as entrevistas para amaciar a imagem do atual presidente.

Mas esta fuga de informação secreta vem revelar uma outra face desta amizade.

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Os documentos descrevem o violoncelista como uma peça importante numa rede clandestina constituída por aliados e associados de Putin que tem vindo a movimentar entre bancos e companhias offshore mais de dois mil milhões de dólares, segundo documentos obtidos pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ, na sigla original), do qual o Expresso é parceiro.

Nestes documentos, Roldugin aparece listado como dono de empresas offshore que, por sua vez, recebiam pagamentos na ordem dos milhões de dólares de outras empresas. Sabe-se que também que uma firma ligada ao violoncelista conseguiu, secretamente, dominar o maior fabricante de camiões do país e que uma outra, também ligada a Roldugin, detém uma fatia gulosa da indústria de publicidade televisiva.

É possível que Roldugin, que já disse publicamente que não é um homem de negócios, não seja o verdadeiro beneficiário destes negócios, servindo antes como um testa-de-ferro para os associados de Putin – e para o próprio Putin.

Os documentos a que o Consórcio teve acesso dão conta de cerca de uma centena de acordos financeiros entre esta rede. Todos eles complexos. Todos os movimentos são de alguma forma disfarçados. Há ações das várias companhias offshore adquiridas e vendidas no mesmo dia, transferências com datas atrasadas, discutem-se sanções financeiras duvidosas e direitos a empréstimos de milhares de milhões de dólares são vendidos entre companhias offshore por um dólar.

Quase em todos os cenários, o resultado é o mesmo: dinheiro e poder encaminha-se na direção desta rede, para empresas – e pessoas – na orla de Putin. Os negócios encobertos da rede permitiram-lhe receber dinheiro de várias maneiras, incluindo centenas de milhões de ólares em “sweetheart loans” [expressão usada para empréstimos em condições que parecem demasiado boas para serem verdade – e para serem recusados] de um banco controlado pelo Estado russo.

Estes documentos chegaram até ao Consórcio através da Mossack Fonseca, uma sociedade de advogados sediada no Panamá que registou algumas das companhias de Roldugin e ajudou na administração do património empresarial da rede nas Ilhas Virgens e em outros paraísos fiscais.

A especulação em torno na riqueza de Putin não é de agora. Umas poucas empresas offshore, um palácio, um iate gigante, tudo património que já lhe sido atribuído em investigações anteriores. Vários meios de comunicação social também já publicaram artigos onde chamavam a atenção não só para a riqueza de Putin mas igualmente para a forma como os seus principais aliados tinham conseguido as suas fortunas. Contudo, a trama completa e detalhada dos assuntos financeiros do núcleo duro do líder tinha-se mantido, até agora, escondida.

Os registos revelam o que até agora tem sido sobretudo matéria de rumores: como os amigos próximos de Putin conduzem os seus negócios. Os documentos internos da Mossack Fonseca revelam finalmente como é que representantes e amigos íntimos favoritos de Putin construíram esta teia de interesses, e como construíram as estruturas empresariais e financeiras que lhes permitiram esconder e movimentar secretamente os seus milhões. Os documentos incluem correspondência eletrónica, acordos de empréstimos, registos de compra e venda de ações, e fotocópias de passaportes, datas de acordos, os montantes exatos de dinheiro transacionado, os termos de cada negócio descritos ao detalhe.

Ler os nomes envolvidos nesta rede é como ter acesso ao livro do último ano de liceu de Vladimir Putin: todos amigos de longa data, todos confidentes próximos – a amizade é a cola que os une. Muitos dos homens mencionados nestes documentos mantêm relações com Putin há décadas, desde os tempos em que São Petersburgo ainda era Leninegrado, antes da queda do bloco soviético.

Há Roldugin, claro, que é padrinho da filha mais velha de Putin. Depois há Yury Kovalchuk, um banqueiro cuja ligação a Putin data dos seus dias como funcionário municipal, e Arkady Rotenberg, outro amigo de infância, que se tornou multimilionário depois de lhe ter sido adjudicada a construção de várias obras públicas, oleodutos e outros projetos.

Além de histórias de infância, estes homens partilham pelo menos uma outra coisa: todos estão ligados ao banco Rossiya, sediado em São Petersburgo, e identificado pelo governo norte-americano como uma espécie de cofre pessoal de Vladimir Putin. Os documentos provam que foi a partir desta instituição financeira que a teia se começou a desenhar. Os funcionários do banco eram também funcionários ao serviço dos homens de Putin, criando empresas offshore, transferindo bens para o nome de Roldugin, o insuspeito violoncelista, e dispersado as transações financeiras por bancos na Rússia, Chipre e Suíça.

O modelo económico que sustenta esta rede, e as regras que ditariam como é que o círculo viria a distribuir os dividendos destas atividades, foi estabelecido ainda nos anos noventa, e ainda em São Petersburgo, quando Putin e os donos do banco Rossiya criaram uma cooperativa para a construção de um condomínio fechado, em que todos tinham uma casa. A cooperativa tinha uma conta partilhada nesse banco: todos contribuíam, e qualquer um podia levantar qualquer montante.

O nome do presidente russo não aparece nos ficheiros da Mossack Fonseca – nem uma vez. Gravações das conversas e mesmo testemunhas presenciais dessas reuniões onde os negócios de Putin eram discutidos mostram que, mesmo entre o seu círculo mais próximo, os intervenientes se referem a Putin por meio de pseudónimos ou simplesmente dirigindo uma mão aos céus.

“É, contudo, inconcebível, que uma rede desta abrangência pudesse ter existido sem o conhecimento e a conivência de Putin”, disse Karen Dawisha, analista política norte-americana com extensa investigação publicada sobre Putin e o seu regime. “Ele simplesmente fica com o que quer”, disse Dawisha, “quando tu és presidente da Rússia não é necessário um contrato escrito, tu és a lei”.

O ICIJ enviou ao Kremlin um conjunto de perguntas detalhadas mas o seu porta-voz, Dmitry Peskov, denunciou previamente estes artigos numa conferência de imprensa como “um ataque” e “um série de mentiras menores que não causarão qualquer dano”, segundo noticiaram agências noticiosas russas. Peskov terá dito ainda que as perguntas enviadas se referiam a empresas offshore e a “um grande número de empresários que Putin nunca viu na vida”.

“Negar uma coisa inúmeras vezes ou comentar coisas que não têm qualquer relação connosco é simplesmente estúpido”, disse Peskov aos jornalistas.

Laços de amizade

Isto está no YouTube. Arkady Rotenberg, um ex-instrutor de judo que se tornou milionário graças a Putin, como acima referido, confraterniza com um grupo de amigos. Putin passa, flanqueado pelos seus seguranças, e Rotenberg não dá pela sua presença – até Putin passar por ele e lhe despentear energicamente o cabelo, como que a um cão.

De todos os homens do seu círculo mais próximo, os irmãos Rotenberg, Arkady e Boris, são os que Putin conhece há mais tempo. A amizade entre os três começa nos anos sessenta, quando se conheceram num ginásio de artes marciais. Um elo forjado no ringue que se fortaleceu nos negócios.

Em 2014, a União Europeia e o governo dos Estados Unidos impuseram sanções contra Arkady e Boris Rotenberg, em retaliação pela invasão da Ucrânia pelo exército russo. Em comunicado, o Tesouro norte-americano nota que os dois [irmãos] “angariaram uma fortuna enorme durante os anos de governo de Putin”, incluindo contratos milionários com o governo – um deles na ordem dos sete mil milhões de dólares durante os Jogos Olímpicos de Sochi. O documento sancionatório descreveu timidamente a razão para a decisão como “atuando para ou em representação de… um funcionário superior” da Federação Russa.

Em 2013, um ano antes da divulgação das sanções, uma das empresas de Arkady Rotenberg garantiu um contrato com o governo russo para a construção de um gaseoduto que levaria gás natural da Rússia à Europa, lucrando com a adjudicação qualquer coisa como 40 mil milhões de dólares. Os documentos mostram que, pela mesma altura, três companhias anónimas transferiram para a rede dos homens de Putin quantias astronómicas. Duas dessas empresas-fantasma, e muito possivelmente, as três, eram controladas pelo mesmo Arkady Rotenberg, segundo os ficheiros da Mossack Fonseca. As mesmas companhias concederam também empréstimos num valor total superior a 231 milhões de dólares a uma quarta empresa sediada nas Ilhas Virgens, a Sunbarn Limited, por sua vez criada por um dos diretores do tal banco Rossiya. Os empréstimos não tinham qualquer data fixada para serem liquidados. Os documentos da Mossack Fonseca são bastante óbvios no que toca às ligações financeiras e empresariais entre Putin e os irmãos Rotenberg mas referem, erradamente, que Sergey Roldugin não tinha filiação política, encobrindo o papel do músico em todo este esquema.

Parece não restarem dúvidas de que Roldugin e Putin eram de facto muito próximos. É referido em diversas publicações como o seu melhor amigo. Foi Roldugin que, em 1980, arquitetou um jantar a quatro, onde Putin viria a conhecer a sua futura mulher, Lyudmila. Putin concedeu a Roldugin a honra de ser padrinho da sua primeira filha, Maria, um papel sagrado segundo a tradição ortodoxa. A fotografia de Putin embalando Maria ao lado da sua mulher e de Roldugin encontra-se com facilidade na Internet. Aparentemente, todas estas provas passaram despercebidas tanto à Mossack Fonseca como aos bancos suíços que são obrigados por lei a determinar as ligações políticas de todos os indivíduos titulares de uma conta bancária, precisamente para evitar que a conta seja utilizada para outros fins. A gíria bancária chama a estas pessoas Politically Exposed Persons (PEPs) – Pessoas Politicamente Expostas.

Dos ficheiros da Mossack Fonseca consta, aliás, uma candidatura do banco suíço Gazprombank Switzerland, de 2014, para abrir uma conta para uma empresa no nome de Roldugin. O formulário pergunta, explicitamente, se o proprietário da companhia mantém “qualquer relação com PEPs ou VIPs”.

A resposta: “Não”.

“O banco tinha a obrigação legal de verificar estas declarações”, disse Mark Pieth, ex-chefe da divisão de combate ao crime organizado do Ministério da Justiça suíço. “Pela sua proximidade com um chefe de estado ainda em funções, ele é claramente uma pessoa exposta”, concluiu o responsável.

Numa carta enviada ao ICIJ, a Mossack Fonseca disse ter estabelecido “políticas e procedimentos” precisamente para avaliar casos que envolvessem políticos e pessoas a eles associadas. A resposta referia ainda que a firma considera esses casos “de alto risco” e por isso conduzia avaliações mais detalhadas e acompanhamentos periódicos. “Conduzimos uma investigação minuciosa a todos os novos potenciais clientes que muitas vezes ultrapassa o que é exigido por lei, tanto a nós como a outras sociedades do mesmo ramo”, disse a firma.

A dedicação de Roldugin a Putin valeu-lhe possivelmente um convite para integrar o clube exclusivo do banco Rossyia. Segundo divulgou a comunicação social russa em 2010, Roldugin detém mais de 3% daquela instituição financeira. O violoncelista disse ao diário New York Times em 2014 que “uns anos antes” tinha passado por algumas dificuldades financeiras e que tinha feito acordos de forma a que ele pudesse aceder a algumas ações do banco. Que serviços prestou Roldugin à instituição para que as ações lhe fossem atribuídas nunca se soube. A história do Banco Rossiya é toda sobre um grupo de amigos que se tornaram acionistas, trabalhando em conjunto e cooperativamente.

O Lago do Dinheiro

Em 1991 o maior accionista do Banco Rossiya era o Partido Comunista de Leninegrado. Foi quando Yury Kovalchuk e Putin começaram a focar a sua atenção na instituição. Na altura, Putin era vice-presidente da câmara e responsável pela captação de investimento externo na cidade, bem como de fomentar a criação de parceiras público-privadas.

Em “A Cleptocracia de Putin: Quem é dono da Rússia?”, Karen Dawisha argumenta que, quando a União Soviética iniciou o seu colapso lento mas certo, Putin assinou os documentos que tornavam o Banco Rossiya propriedade de uma empresa recém-formada por Kovalchuk e outros seus aliados. “A função de Putin foi tornar legal aquilo que de outra forma teria sido ilegal”, disse Dawisha.

Kovalchuk tornou-se acionista maioritário e diretor desta nova versão do Banco Rossiya. Quando o governo norte-americano sancionou Kovalchuck em 2014, referiu-se-lhe como o “tesoureiro pessoal” de Putin.

Em meados dos anos 90 deu-se então o negócio da cooperativa estabelecida por Kovalchuk e outros acionistas do banco para adquirirem casas de campo no Lago Komsomolskoye. O próprio Putin adquiriu um imóvel na área, formando assim uma cooperativa que beneficiava os oitos residentes deste condomínio fechado. Deram-lhe simplesmente o nome de Ozero (o Lago).

Os princípios de fraternidade comunitária onde se alicerçaram as sachas de Putin e dos seus amigos sustiveram também os seus negócios no Banco Rossiya, mais de uma década depois.

A pouco mais de uma hora de carro da cooperativa de Ozero fica o resort de ski Igora. De acordo com artigos publicados pelos meios de comunicação local, este luxuoso complexo é o local preferido de Putin para praticar ski, e o Banco Rossyia financiou a sua construção. O casamento da filha mais nova de Putin, Katerina Tikhonova, foi igualmente celebrado aqui, em 2013, segundo noticiou a agência Reuters.

Katerina Tikhonova casou com Kirill Shamalov, filho de Nikolai Shamalov, um dos membros da cooperativa de Ozero e um dos acionistas originais do Banco Rossyia. Menos de um ano depois da cerimónia, o jovem casal conseguiu um empréstimo de 1,3 mil milhões de dólares junto do banco Gazprombank, que utilizou para adquir 21% da Sibur, uma das maiores empresas de petroquímicos da Rússia. Outro ano volvido e esses 21% valiam cerca de dois mil milhões de dólares, noticiou também a agência Reuters.

A empresa russa que detém o resort de ski, a Ozon, é parcialmente detida por Kovalchuk, acionista maioritário do Banco Rossyia. No início de 2009, a Ozon recebeu quase 10 milhões de dólares em empréstimos através de uma das empresas offshore ligadas ao universo de Putin, de acordo com os ficheiros da Mossack Fonseca. O juro dos empréstimos foi fixado em 1%. Um dos empréstimos, de cinco milhões, foi revisto e o seu prazo limite de liquidação estendido várias vezes – e, depois disso, convertido para rublos russos. A taxa de câmbio final, bem como nova emendas ao contrato, reduziram o seu valor e, no final, o montante devido, mostram os documentos da fuga de informação.

Kovalchuk, através de um advogado, recusou responder às perguntas enviadas.

Guerra e Paz

Nos primeiros dias de Agosto de 2008, as tropas russas invadiram a Geórgia. Chegaram em camiões Kamaz e fizeram uma guerra que durou cinco dias. Há muito que Putin vinha demonstrando o seu apreço pela empresa, visitando as fábricas onde os veículos eram construídos e conduzindo, o mais velozmente possível, em benefício das câmaras de televisão, um desses camiões. Cinco meses antes da invasão, mostram os documentos, o violoncelista Roldugin tornou-se, secretamente, um dos altos dirigentes da empresa, cujos lucros rondavam, em 2007, os 3,5 mil milhões de dólares. Em Março de 2008, uma das empresas offshore de Roldugin recebeu uma oferta – que não se sabe de onde veio – para adquirir uma parte minoritária na Kamaz através de uma outra empresa, a Avtoinvest.

Um dos conselheiros de Putin, Ruben Vardanyan, era director do banco que detinha a Avtoinvest, uma empresa com uma grande fatia da Kamaz. Vardanyan queria fortalecer e consolidar a sua maioria na Kamaz, de acordo com notícias da imprensa russa, mas precisava de ajuda. O governo da República Russa de Tartaristão detinha parte significativa dessas cobiçadas ações. Havia que encontrar uma forma de o persuadir a vendê-las.

Como parte do acordo, a empresa de Roldugin obteve uma espécie cláusula onde se consagrava que Roldugin estava autorizado a decidir sobre tudo o que estivesse ligado às operações com a Kamaz – desde a aprovação dos orçamentos e planos de negócios até à decisão de que companhias estrangeiras seriam autorizadas a investir no fabricante automóvel, desde que a Avtoinvest conseguisse a sua maioria. Por esta espécie de declaração de plenos poderes a empresa de Roldugin pagou 1,5 milhões de dólares.

Em contrapartida, segundo pode ler-se nos ficheiros da Mossack Fonseca, esperava-se de Roldugin que exercesse a sua influência para que o “projeto” fosse aprovado. O projeto era conseguir a tal maioria para a Avtoinvest. Em Abril de 2008, o Tartaristão aceitou vender as suas ações à Avtoinvest, abaixo do seu valor de mercado, segundo artigos publicados aquando da finalização do negócio.

Um mês depois, Vladimir Putin abandonava a presidência, rodando para a cadeira de primeiro-ministro, então ocupada por Dmitry Medvedev, mais um dos seus confidentes dos dias de São Petersburgo. Modificaram-se os cabeçalhos do papel timbrado do Kremlin mas toda a gente sabe com quem ficou o poder.

Durante os anos da sua presidência, de 2008 a 2012, a liquidez do banco Rossyia aumentou de quatro mil para oito mil milhões de dólares – e a rede de Putin meteu a quinta e nunca mais parou. Quando Putin foi ocupar o lugar de primeiro-ministro, a Kamaz estava a passar a sua melhor fase e o futuro afigurava-se, no mínimo, auspicioso. A empresa anunciou que iria investir 1,5 mil milhões na modernização das suas instalações e que esperava conseguir duplicar a sua produção. Foi também por esta altura que a empresa começou a sondar possíveis investidores externos: segundo a imprensa russa, a Kamaz queria um comprador para 42% das suas ações. A crise financeira atingiu como um raio a indústria automóvel e a Kamaz cortou os horários de trabalho para quatro dias e reduziu acentuadamente a produção. A empresa de Roldugin nunca adquiriu um único título da Kamaz. Em dezembro de 2008, os alemães da Daimler acabaram por comprar uma parte da companhia – mas apenas 10% e não 42%. Para conseguir está fatia da Kamaz, a Daimler pagou 250 milhões de dólares ao banco de investimento de Vardanyan, o tal conselheiro de Putin, que por sua vez detinha a Avtoimvest.

Ruben Vardanyan não aceitou responder às nossas perguntas porque elas envolvem “informação confidencial que se refere a propriedades que ele não está autorizado a discutir.”

“O projecto foi pensado e erigido consultando todos os representantes legais e comerciais para assegurar completa observância de todos os regulamentos”, disse Vardanyan.

Negócios escondidos

Em setembro de 2009, um diretor de auditoria interna da Mossack Fonseca sinalizou uma transação de 103 milhões de dólares envolvendo uma empresa chamada Sandalwood Continental Limited. O gestor do Banco Rossiya que estava a tratar da transação queria que os diretores da Mossack Fonseca a aprovassem, mas a dimensão da operação parecia incómoda.

Sandalwood era o eixo de toda a rede de ligações a Putin. Aparentemente, uma das funções da Sandalwood era receber empréstimos do Russian Commercial Bank (RCB) no Chipre, que por sua vez era apoiado pelo VTB, banco controlado pelo Estado com sede em Moscovo. Os 103 milhões de dólares começaram por ser um empréstimo do RCB Chipre à Sandalwood.

No papel, o dono da Sandalwood era Oleg Gordin, um pequeno empresário que tinha trabalhado em forças policiais, segundo um documento de abertura de conta no banco RCB que foi encontrado nos ficheiros. Gordin tinha também procuração como advogado em contas bancárias de algumas empresas de Roldugin.

Entre 2009 e 2012, segundo os ficheiros, a Saldalwood tinha linhas de crédito com o RCB de cerca de 800 milhões de dólares. Em 2009, a Sandalwood tinha empréstimos no total de 600 milhões de dólares, e de pelo menos 350 milhões em 2010.

Os empréstimos que o RCB fez à Sandalwood eram pouco habituais para um banco. Eles eram concedidos a devedores que não tinham modelos de negócio que permitissem discernir uma forma de pagar de volta o dinheiro. Os empréstimos não tinham garantias. A maioria não requeria pagamentos de prestações, apenas confiavam na promessa de que a totalidade do dinheiro seria devolvida depois de um certo período de tempo.

“A suposição de que o banco RCB Ltd é um chamado ‘bolso’ para personalidades russas de alta patente é completamente infundada e certamente não corresponde ao atual estado de coisas,” escreveu Michael Maratheftis, diretor de comunicação com os média do RCB, numa resposta por correio eletrónico a questões de detalhe do ICIJ e dos seus parceiros de média.

Maratheftis disse que o banco estava legalmente impedido de responder a questões sobre “terceiros”, mas que agiu sempre “de forma transparente”. O responsável acrescentou que o banco reenviou as perguntas do ICIJ para as autoridades legais no Chipre, para uma “investigação independente”.

A Sandalwood também funcionava como elo numa cadeia de empresas-sombra de contratos de swap de empréstimos. Ela atribuía os direitos de pagamentos de juros no valor de milhões de dólares a empresas, incluindo uma de Roldugin que pagou um dólar para receber oito milhões de dólares por ano em juros. Dois especialistas em banca que analisaram as concessões de empréstimos à Sandalwood e de um empréstimo do RCB à empresa disseram que os documentos levantavam múltiplas bandeiras vermelhas e não pareciam fazer muito sentido económico.

“Poder parecer que evasão fiscal, fraude e outros atos do género estão subjacentes a estas transações, com objetivos de lavagem de dinheiro”, afirmou David Weber, diretor académico de programas de gestão de fraude da Universidade de Maryland e antigo advogado especial do Departamento de Estado Americano de Controlo de Moeda.

Segundo uma análise dos dados da Mossack Fonseca feita pelo ICIJ e pelos seus parceiros de investigação, cerca de dois mil milhões de dólares passaram pela rede entre 2008 e 2013, a maior parte através da Sandalwood Continental.

A Sandalwood também serviu como cartão de crédito de vários tipos, emprestando a mais de duas dúzias de empresas associadas. Emprestou dinheiro a todos e a mais alguns, desde ao dono da estância de ski de Igora a um hotel próximo da fronteira da Rússia com a Finlândia. Quando a Sandalwood emprestou a outras empresas offshore, os prazos de pagamento foram por vezes tão longos como vinte anos.

No caso do empréstimo de 103 milhões de dólares, a Sandalwood recebeu esse crédito do RCB e imediatamente enviou o dinheiro para uma empresa cipriota chamada Horwich Trading. O gestor do Banco Rossiya responsável pela transação queria que os diretores panamenses da Mossack Fonseca assinassem rapidamente o acordo de empréstimo à Horwich Trading em nome da Sandalwood. Um dos sócios da Mossack Fonseca sugeriu que eles obtivessem primeiro uma carta identificando a sociedade de advogados, possivelmente para evitar serem responsabilizados por qualquer saque do RCB.

Depois, Jurgen Mossack, um dos fundadores da sociedade de advogados, apareceu em cena:

“Creio que isto é delicado”, escreve num email em espanhol. O seu receio é de que “estejamos a assistir a pagamentos de origem e propósito duvidosos.”

O gestor do Banco Rossiya explicou que o empréstimo estava estruturado de forma a tirar partido do acordo fiscal entre a Rússia e Chipre. Para conseguir a aprovação, ele deu uma carta de garantia e outros documentos, e criou um calendário de pagamentos regulares do empréstimo. Esse é o único empréstimo do RCB à Sandalwood nos ficheiros que tem um cronograma de pagamentos regulares. É também a única vez nos ficheiros em que a Mossack Fonseca parece ter sido contestada.

As alterações satisfizeram a Mossack Fonseca. Os panamenses também ficaram mais confortáveis com o facto de uma sociedade de advogados suíça, a Dietrich Baumgartner & Partners, ter ajudado a processar a papelada para a rede do Banco Rossiya.

“Como trabalhamos com este cliente, de um reputado banco russo, há vários anos, e o nosso cliente legal de referência é um conhecido escritório de advogados suíço, penso que podemos aceitar as explicações e avançar”, escreveu um diretor do escritório do Liechtenstein da Mossack Fonseca.

Um email enviado mais tarde detalha os honorários que a Mossack Fonseca cobrou à Sandalwood, que eram calculados com base no montante dos empréstimos. Para ajudar a criar os documentos necessários para o empréstimo de 103 milhões, a sociedade recebeu 2.030 dólares.

Segredos dos média

Mikhail Lesin estava intimamente envolvido nos esforços de Putin e do Banco Rossiya para controlar meios de comunicação social russos. Ele foi o primeiro ministro da Comunicação de Putin, mais tarde um conselheiro presidencial no seu segundo mandato, e supervisionou o reforço da propaganda do regime. O mandato governamental de Lesin teve paralelo com o crescimento do império de média do banco.

Enquanto esteve no governo, Lesin desempenhou um papel chave em negócios que colocaram os críticos dos média sob proprietários mais próximos e alinhados com o Kremlin. Depois destes esforços, várias vozes críticas do regime russo ficaram silenciosas.

Depois de Medvedev substituir Putin como Presidente, Lesin deixou o governo e juntou-se ao maior grupo privado de comunicação social do país, a Gazprom-Media, que era gerida pelo Banco Rossiya.

A Gazprom-Media era apenas parte do conglomerado de média construído pelo Banco Rossiya. A sua expansão valeu ao presidente do banco, Yury Kovalchuk, a alcunha de Rupert Murdoch russo. Em 2005, o Banco Rossiya comprou uma participação numa pequena rede de televisão, que Putin designou como televisão de emissão nacional, assim aumentando muito a sua penetração e os seus lucros. Também tomou o controlo da Ren-TV, silenciando vozes críticas e investigações ao governo.

Agora, os ficheiros da Mossack Fonseca revelam que havia uma componente secreta tanto em Lesin como nos negócios de média do Banco Rossiya. Lesin tinha uma empresa chamada Gloria Market Ltd., com sede nas Ilhas Virgens Britânicas. Ele criou-a em 2011, para faturar dinheiro de publicidade, segundo um formulário de origem de fundos encontrado nos ficheiros Mossack Fonseca.

No final dos anos de 1990, Lesin ajudou a montar uma empresa de venda de publicidade chamada Video International, que a dado ponto controlou quase dois terços da publicidade de televisão do país. Enquanto o Banco Rossiya publicamente detinha 16% da Video International, uma empresa offshore de Roldugin criada secretamente pelo banco detinha mais 12,5% da empresa, mostram os ficheiros. Segundo os formulários das contas bancárias de 2014, a empresa, International Media Overseas, tinha receitas anuais de cerca de dez milhões de dólares a partir das suas holdings.

Um advogado que representa a Video International declinou responder a questões de detalhe enviadas, justificando que a informação não era pública na Rússia.

A International Media Overseas, de Roldugin, fez mais do que simplesmente deter participações em empresas de média. Em 2011, a companhia entrou em acordos retroativos de ações com uma firma offshore nas Ilhas Caimão. A receita foi para a Suíça, onde a retroatividade é legal.

Somas idênticas de ações foram transacionadas entre as partes através de contratos swap, em compensações recíprocas, de forma a que nenhuma ação tivesse efetivamente de mudar de mãos. Em vez disso, as empresas acordaram em fazer a troca e depois simplesmente pagaram o lucro como se ele efetivamente tivesse acontecido. Em 2011, a International Media Overseas ganhou 463,8 mil dólares com estes negócios. Os ficheiros revelam que a Sandalwood Continental teve um ganho líquido de quase quatro milhões de dólares com este tipo de transações entre 2008 e 2011.

Gestão de crise

O círculo de amigos e parceiros de Putin são guiados por dois imperativos: confidencialidade e controlo. Eles odeiam risco. Putin tem mostrado que está disposto a dar passos agressivos para manter o sigilo e proteger ativos comuns.

Em dezembro de 2011, o sistema financeiro do Chipre, onde a Sandalwood Continental realizava a maior parte dos seus negócios, estava com problemas. O país iniciou negociações com a Rússia para um empréstimo de emergência. No final desse ano, a Sandalwood, que tinha relações bancárias com o RCB Chipre, começou a transferir os seus empréstimos para outra empresa com sede nas Ilhas Virgens Britânicas, chamada Ove Financial.

Em 2012, a Sandalwood atribuiu dúzias de empréstimos, por vezes de centenas de milhões de dólares, à Ove Financial, por um dólar cada um, outras vezes por nada de nada.

A Ove Financial também serviu para ser acionista da Gloria Market, de Mikhail Lesin.

A Ove Financial tinha operações bancárias no Luxemburgo , que estava protegido do tipo de turbulência que estava a afligir o Chipre. A empresa tinha também base num veículo offshore no Panamá, chamado Morgan & Morgan. Queixas espalhadas em trocas de emails indicam que os gestores do Banco Rossiya estavam insatisfeitos com o serviço da Mossack Fonseca, porque a sociedade de advogados demorava de mais a enviar documentos ou não os preparava exatamente como tinha sido especificado.

A rede continuaria mas sem a Mossack Fonseca nem a Sandalwood Continental. Em resultado disso, em 2013 a Sandalwood encerrou as portas.

Os parceiros de Putin fizeram outras mudanças para fortalecer a rede. Um novo representante tomou o lugar de Roldugin como dono da companhia que tinha estado envolvido na Kamaz. Roldugin não tinha sido sempre o homem da frente mais cioso. Uma vez, um gestor do Banco Rossiya queixou-se à Mossack Fonseca por email, dizendo que era um desafio conseguir que Roldugin assinasse documentos. Isso agora já não seria um problema.

Pela mesma altura, os membros da Ozero Cooperative começaram a transferir para os seus filhos alguma da enorme fortuna que tinham acumulado. E Boris Rotenberg fez o seu filho Igor proprietário de algumas das empresas mais secretas da Mossack Fonseca, mostram os registos da fuga de informação.

Estas transferências geracionais são sinais da ascensão de uma nova aristocracia russa.

Os Rotenbergs e outros milionários que tinham florescido sob a proteção de Putin estão a ter impacto na economia russa.

Os dez maiores detentores de riqueza da Rússia têm 85% de toda a riqueza residencial do país, segundo um relatório de 2014 do Credit Suisse. Entretanto, 83% da população tem uma riqueza pessoal inferior a 10 mil dólares. A desigualdade na Rússia é tão grave que merece uma categoria separada, afirma o relatório.

Em 2014, Lesin demitiu-se da Gazprom-Media. A s notícias de imprensa da Rússia disseram que a culpa foi de um conflito entre ele e Kovalchuk, do Banco Rossiya. Lesin mudou-se para os Estados Unidos, onde detinha alegadamente milhões de dólares em imobiliário, património que levantou suspeitas junto das autoridades americanas.

Em novembro de 2015, os média russos noticiaram que Lesin tinha morrido de um ataque de coração num hotel em Washington. Quatro meses depois, o diretor de exames médicos de Washington anunciou que a morte tinha sido tudo menos natural. O inspetor médico afirmou que Lesin morrera de um traumatismo craniano resultante de força bruta e que tinha feridas no pescoço, peito e membros. A polícia está a investigar a sua morte.

Nunca se saberá quantos segredos da rede de ligações a Putin levou Mikhail Lesin para a cova.

Este artigo foi escrito por Jake Bernstein, Petra Blum, Oliver Zihlmann e David Thompson. Reportagem adicional por Olesya Shmagun e Roman Anin, do Organized Crime and Corruption Reporting Project.

Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (Rede Expresso)

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