Um fadista, um autarca e muitos polícias ficaram sem curso devido a Relvas

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Foi o caso Relvas que despoletou o processo

Miguel Relvas não é a única figura pública entre os 152 alunos da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT) que viram as suas licenciaturas e certificados mandados anular pelo Ministério da Educação por irregularidades no processo de atribuição de equivalências. Também o fadista Nuno da Câmara Pereira, que faz parte dos quadros do Ministério da Agricultura há 40 anos, diz adeus ao curso, neste caso de Engenharia Ambiental, após o processo levado a cabo pela Inspeção-Geral da Educação e Ciência (IGEC).

Os restantes nomes da lista de ex-alunos que ficaram agora sem diploma são menos mediáticos, mas há alguns relativamente notáveis: o presidente da Câmara de Porto de Mós, que tirou um curso de especialização, o ex-comandante da Polícia Municipal de Lisboa e o atual número dois, bem como vários investigadores da Polícia Judiciária de renome, agentes da PSP, guardas prisionais e militares graduados.

Um grupo de mais de dez alunos, quase todos ligados a forças de segurança, já contratou um representante legal para antecipar a guerra que se avizinha nos próximos tempos. “Os meus clientes estão de consciência tranquila, o mesmo não se pode dizer da universidade”, declara José Carlos Valério, advogado deste grupo, que deixa em aberto a hipótese de avançarem com o caso para os tribunais: “Veremos o que se segue nos próximos dias. Estamos ainda a analisar toda a situação”.

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Por determinação da Comissão de Acesso aos Dados da Administrativos, o Ministério da Educação teve de facultar aos jornalistas a consulta de todos os documentos da inspeção que passou a pente fino cerca de 400 processos de alunos que passaram pela Lusófona entre 2006 e 2013 e que obtiveram diplomas e certificados com a ajuda da atribuição de equivalências, quer por formação académica anterior, quer pelo reconhecimento da experiência profissional. Centenas de relatórios, auditorias, contraditórios e despachos estão compilados em 22 dossiers.

Um deles tem o processo de Nuno da Câmara Pereira. Graças ao diploma de Regente Agrícola, um curso médio criado no Estado Novo e que dava equivalência ao antigo 7º ano do liceu (atual 11º), o fadista não precisou de fazer praticamente nenhuma cadeira para conseguir a licenciatura em Engenharia do Ambiente.

A Universidade considerou que as disciplinas que Nuno da Câmara Pereira frequentou no curso de Regente Agrícola eram “equivalentes” às do plano de estudos da licenciatura. Por exemplo, as disciplinas de Ciências Físico-Químicas e Ciências Naturais feitas ao nível do liceu bastaram para “passar automaticamente” a sete cadeiras da faculdade – Química I e II, Química Orgânica, Física I e II e Física Experimental I e II – sem ter de as frequentar.

A experiência profissional também foi determinante. A direção técnica de obras de drenagem e o cargo que Nuno da Câmara Pereira exerceu como vice-presidente da Cruz Vermelha de Sintra, por exemplo, valeram ao fadista a equivalência à cadeira de Microbiologia, enquanto uma formação profissional na área da Suinicultura serviu para ter aprovação a Saúde Pública.

A auditoria realizada pela IGEC detetou várias irregularidades no processo, nomeadamente a falta de um parecer a justificar a correspondência entre a experiência profissional e as cadeiras às quais foi atribuída equivalência – é um dos motivos mais frequentemente invocados pela inspeção para determinar a anulação dos créditos – ou o facto de o número de equivalências ter excedido o máximo previsto por lei. A licenciatura do fadista foi anulada, tal como aconteceu com outros 13 regentes agrícolas tornados engenheiros do ambiente.

Ao Expresso, Nuno da Câmara Pereira diz-se “surpreendido” e não poupa críticas para descrever o caso, que considera “pouco lógico”, “uma vergonha” e até “de malucos”. “Só num país de caça às bruxas é que acontece isto”, afirma. Garante que na sua turma não houve procedimentos esquisitos, “do tipo Relvas”, tendo preenchido todos os requisitos que lhe foram exigidos.

É por isso que não entende como é que o Governo mandou a Lusófona anular o seu curso, “ainda por cima quatro anos depois de o concluir”. O fadista e agrónomo garante, no entanto, que não vai abrir guerras contra ninguém e pondera a hipótese de concluir algumas cadeiras se essa for a solução para ter o diploma na mão. “Tenho 64 anos, quero sossego. Só não admito que ponham em causa o meu bom nome”, salienta.

30 cursos com irregularidades

Entre os 152 processos que foram anulados, há licenciaturas de todas as áreas, da Arquitectura às Ciências Aeronáuticas, passando por Ciência Política e Relações Internacionais, Contabilidade, Engenharia Civil, Informática ou do Ambiente, por exemplo. São 30 ao todo. Mas é em Estudos de Segurança que há mais casos de irregularidades na forma como foram atribuídos créditos e equivalências. A estes processos juntam-se outros 79 em que as falhas processuais eram menos graves e que, por isso, já prescreveram.

Não faltam casos caricatos entre as equivalência atribuídas pela ULHT. Um aluno conseguiu aprovação automática a uma cadeira da licenciatura em Engenharia Eletrotécnica por ter frequentado um curso técnico-profissional de Instalações Eléctricas na escola secundária. Outro conseguiu equivalência a Cálculo I e II, Álgebra e Métodos Estatísticos graças à disciplina de Matemática feita no liceu.

Noutra situação, um jornalista conseguiu a licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais com equivalência a 25 das 36 cadeiras do curso, nove das quais por creditação da experiência profissional. A experiência de 12 anos como redator de política de um jornal deu equivalência à cadeira de Psicologia Social e das Organizações, enquanto a cobertura noticiosa da Presidência da República valeu-lhe a passagem a Introdução ao Direito e a Quadros Institucionais da Vida Económico-Político-Administrativa.

Os exemplos multiplicam-se. E ainda que não compita ao Ministério da Educação avaliar a pertinência das equivalências, pode verificar a forma como os processos correram, se respeitavam os estatutos da universidade e se a documentação estava em ordem. E são essas falhas que são apontadas para justificar a declaração de nulidade tal como foi pedido em relação a Miguel Relvas.

Atribuição de equivalências a disciplinas que não constavam como opção nos respetivos cursos e a ausência de fundamentação para a atribuição de créditos a certas cadeiras como resultado de uma determinada experiência profissional foram as irregularidades mais frequentemente detetadas.

O comunicado do presidente da câmara

João Salgueiro, autarca de Porto de Mós que também se encontra na lista dos 152 processos anulados, optou por emitir um comunicado sobre o assunto, através do gabinete de comunicação da Câmara Municipal: “O aluno frequentou a universidade durante dois anos, tendo concluído a especialização em Ciências do Ambiente, para a qual não houve qualquer creditação curricular”, garante.

O problema é que a situação parece mais complicada. A IGEC considera que João Salgueiro não reunia as condições para ser aceite no curso nas condições em que foi (como equiparado a bacharel), devendo a Universidade “diligenciar para declarar a nulidade do acesso”, lê-se num dos relatórios da inspeção.

Alunos têm de devolver diplomas

Aos 59 anos, e com uma longa carreira na PSP, o subintendente Manuel Rodrigues, atual 2º comandante da Polícia Municipal, fez parte do grupo de alunos que transitou da Universidade Lusíada para a ULHT, onde concluiu o curso de Estudos de Segurança.

“Foi um excelente curso, com ótimos professores. Ia todos os dias às aulas, não andava ali a brincar nem queria a licenciatura para a exibir”, frisa. Agora, sente-se “indignado” com os responsáveis da universidade, estranhando a ausência de informação sobre o assunto. “Há três meses disseram-me que estava tudo bem com a licenciatura e que o processo estava concluído. Há duas semanas recebi uma carta da ULHT para levar o diploma para a faculdade, sem adiantarem pormenores. Mas não vou levar certificado nenhum”, garante.

Até meados deste mês, segundo a própria universidade, 101 ex-alunos tinham sido notificados para devolver os respetivos certificados e 26 já tinham entregue os documentos que atestavam a conclusão do seu grau académico.

Um dos colegas de curso de Manuel Rodrigues é o ex-comandante da Polícia Municipal, agora na reforma, André Jesus Gomes, que prefere “não fazer comentários” sobre o processo. Ambos temem que o caso possa vir a pôr em causa a “reputação” alcançada durante várias décadas na polícia.

O Expresso falou também com dois inspetores da Polícia Judiciária que frequentaram o mesmo curso. Um deles garante que a universidade tem-lhe dito que o seu caso era uma questão administrativa e que iria ficar tudo resolvido, prometendo-lhe todo o tipo de apoio. Caso contrário, avança para a Justiça. “No limite, pode estar em causa um crime de burla”, afirma o investigador, que pede anonimato.

Há ainda três alunos do já referido curso de Estudos de Segurança que fazem parte da administração da empresa de vigilância privada Securitas.

Com a universidade a cumprir assim as determinações do Ministério, resta aos ex-alunos contestar a decisão nos tribunais ou voltar às aulas. Cerca de uma centena já aceitou “reingressar nos ciclos de estudos para concluir a sua formação e regularizar a situação académica”, informou o ministério este mês.

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