Um Orçamento entre a oposição de direita e o fogo amigo da esquerda

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António Costa (Foto: Marcos Borga/Expresso)

O debate do Orçamento do Estado, que arrancou esta segunda-feira na Assembleia da República, parecia, a certa altura, o velho fadinho de Hermínia Silva: “Rosa enjeitada, sem mãe, sem pão, sem ter nada.” O documento foi desfeito à direita, o documento foi criticado, embora mais suavemente, à esquerda – e foi, até, reconhecido como insatisfatório pelo seu principal responsável, o primeiro-ministro António Costa.

“Este é o seu Orçamento, do BE, do PCP e do PEV”, resumiu Nuno Magalhães, do CDS; “esta é a vossa oportunidade”, disparou Luís Montenegro, ao abrir as hostilidades do debate em nome do PSD. “Este não é o nosso Orçamento”, avisou Catarina Martins, do BE; “este não é o nosso Orçamento”, repetiu, ipsis verbis, Jerónimo de Sousa, do PCP.

“Este é o meu Orçamento”, acabou por assumir António Costa, quando o documento corria riscos de irremediável orfandade. “Este é o meu Orçamento, que resulta dos compromissos que eu assumi com os portugueses, dos compromissos que que assumi com o BE, com o PCP e com o PEV, e dos compromissos que eu assumi com a Comissão Europeia”, proclamou o primeiro-ministro quando o debate já levava mais de uma hora e já tinha sido alvo de todo o tipo de maus-tratos do PSD e do CDS, tinha já sido criticado pela líder do BE e estava na iminência de alguns reparos do PCP e do PEV.

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Entre os tiros de rajada da direita e o fogo amigo da esquerda, Costa assumiu a paternidade do documento, mas também assumiu a autocrítica às suas insuficiências, fazendo seus alguns dos argumentos que ouviu das bancadas à esquerda dos socialistas. Ao mesmo tempo, puxou várias vezes bloquistas e comunistas para a foto de família – apesar das distâncias que Catarina Martins fez questão de marcar de forma veemente e Jerónimo de Sousa referiu, de modo mais suave.

Carlos César, do PS, talvez antecipando os passos que BE e PCP dariam para se demarcarem de alguns aspetos do documento, não hesitou em carimbar o momento histórico: “Amanhã vamos ter uma votação com alto significado político. Pela primeira vez na história dos governos constitucionais, os partidos à esquerda do PS votarão favoravelmente uma proposta de OE”. O voto favorável da esquerda, na terça-feira, nunca esteve em causa. Mas o ADN do Orçamento, esse, é socialista, conforme BE e PCP insistiram a cada oportunidade.

Não por acaso, apenas os deputados do PS aplaudiram a intervenção inicial e as seguintes de António Costa. Por vinte vezes os aplausos dos socialistas pontuaram com palmas o discurso do chefe do Governo – e por vinte vezes ficaram sozinhos no exercício. Aqui e ali um ou outro deputado do BE seguiu a maioria, mas foi sempre sol de pouca dura.

Esquerda apoia, mas critica

Catarina Martins foi a mais dura com o OE que terá luz verde do BE. “Este é o OE do governo do PS, não é o OE do Bloco”, fez questão de frisar, embora confirmando que “será viabilizado com voto do BE”. E fez um exercício de prestação de contas perante os eleitores mais frágeis, e sobretudo aos desempregados. A esses, reconheceu que é difícil justificar o apoio ao documento orçamental, pois “não se encontra neste OE mudança que baste”. Mesmo elencando as “melhorias nos apoios sociais” e “o acesso automático à tarifa social de energia” que o BE conta acrescentar na especialidade às medidas que já estão no OE, “tudo isso é ainda muito pouco”.

O documento de Mário Centeno foi classificado por Catarina Martins como “tímido na recuperação de salários e pensões”, com “problemas importantes na contratação pública, na saúde, na educação e na cultura” e com “escassas respostas a quem mais urgência tem numa mudança”. Embora reconheça que o OE “inicia a recuperação rendimentos de quem menos ganha” e “permite alguma tímida mudança positiva”, a líder bloquista avisou que o documento “colocou entre parêntesis” a medida que o BE aponta como mais decisiva para o futuro do país: a renegociação da dívida.

Menos crítico, Jerónimo de Sousa fez o exercício ao contrário: em vez de se concentrar nos pontos onde o OE é insuficiente para a esquerda, focou-se numa elaboração sobre como seria um Orçamento apresentado pela direita. Para concluir que todos os ganhos do documento atual ter-se-iam perdido num Orçamento que “seria certamente diferente, de agravamento de injustiças e desigualdades sociais”, repetindo “a insensibilidade social reinante nestes últimos anos”.

Mesmo elencando todas as vantagens que encontra no Orçamento de Centeno em relação a uma hipotética alternativa de direita, Jerónimo deixou a ressalva de que as medidas positivas do OE “são medidas insuficientes, que ficam aquém do necessário e até do possível”. Mas nada que belisque o apoio do PCP, como o do PEV, que logo a seguir repetiu o argumentário.

Uma espécie de autocrítica de Costa

Feitos os elogios e as críticas, BE e PCP puxaram pelas propostas de alteração que ainda esperam fazer na especialidade. De António Costa ouviram o espectável: o elogio à seriedade dos parceiros de esquerda e a promessa de introduzir ainda algumas dessas propostas de alteração nas próximas semanas. Só a exigência de renegociação da dívida continuou sem resposta.

“Aquilo que estamos já a fazer em conjunto neste OE é muito mais do que poderíamos fazer se não tivéssemos o acordo que fizemos e a direita continuasse a governar”, frisou Costa. Mais: em sintonia com os dois partidos que dão a maioria ao PS, o chefe do Governo fez mesmo uma espécie de autocrítica sobre o caminho feito neste OE: “não consegue responder a todos”, reconheceu em resposta a Catarina Martins, assumindo que desse ponto de vista “a sua insatisfação é também a minha insatisfação”. Mas há mais vida para além deste Orçamento, lembrou Costa. Se este fosse o último exercício orçamental deste governo, “eu estaria muito angustiado”, como é apenas o primeiro, e outros virão com mais medidas de inversão da austeridade, “estou só angustiado”.

Direita chumba e arrasa o “Orçamento intercalar”

À direita, foi o expectável arraso. Não houve aspeto do OE que tenha escapado às críticas dos líderes parlamentares do PSD e do CDS, desde a sucessão de erratas e correções até a acusação de que não há alívio da austeridade nem virar de página, passando pela previsão de um falhanço em toda a linha. Com uma pergunta feita com insistência pelas duas bancadas da anterior coligação: quais as medidas adicionais que o Governo estará a preparar para apresentar em Bruxelas quando as atuais contas falharem?

Costa reiterou que não haverá medidas adicionais, porque as atuais não vão falhar, mas Luís Montenegro não hesitou em classificar o documento como um “Orçamento intercalar”, que só vale no “intervalo entre a versão inicial e a versão final, o plano B que o senhor primeiro-ministro teima em esconder”. Nuno Magalhães marcou mesmo a data para voltarem a falar sobre as contas do Estado: “Tudo isto pode terminar num rectificativo já em abril”.

Filipe Santos Costa (Rede Expresso)

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