Um perfeito algarvio

Das arribas de São Vicente aos juncos do Guadiana é muito mar, muita alfarrobeira. Mas dança-se com os mesmos passos o corridinho seja em Cachopo ou lá na Carrapateira. E se um tipo cheirar a funcho, a esteva ou a maresia; se um trisavô foi cativo ou gelou no contrabando nas águas da Berberia; se designa por escaleira os degraus duma açoteia; se a bem da reputação tacha de almareio uma cardina desatada; se em tempos matava a fome a arjamolho e figo seco (do coito, que era o mais docinho); se foi caseiro, ganhão, pescador ou almocreve; se as mãos se lhe calejaram na rabiça de um arado ou nas redes do tresmalho; se rodou no baile do teso e levou coice e canelada ao som de um fole remexido sem perder a educação; se engoliu de mata-bicho um oitavinho de medronho que lhe fez arder o peito mas lhe empinou a tenção; se ao caminhante perdido garante que é logo ali a légua que ainda falta para atingir o seu destino; se no seu entendimento e pelo que à estranja respeita, o espanhol não é estrangeiro, é espanhol, sendo o de Vinhais transmontano e o de Borba alentejano; se leva à conta de pagode e por isso não se escama com o antigo dito mordaz, recitando que algarvios, burros brancos e cães de caça, é tudo a mesma raça, nem quando lhe lembram a verrinosa estatuição dum regulamento militar de antanho exarando que para corneteiros e tambores devem escolher-se ciganos, algarvios e outras gentes de mau porte; se por achar muito extensos os pronomes possessivos os encurta e dá ao sotaque o mê pai e o sê chapeu; se a tineta lhe puxa, qual saveiro à enseada quando o levante se solta, para versos e alegorias e a devanear se completa; se é parceiro da preguiça e tem na gula uma amante, mas da lealdade é servo; se vai com o vento à borga, com a maré à redinha, com uma cigana às cantigas, com um cauteleiro à poesia, com um manguito à abadia; se às pontas e às arestas, aos extremos e aos adversos, prefere plainos e arqueios, renúncias e comedimentos; se a quem quer o que não há, ou, havendo, não lhe é devido, responde, com mofa na voz, que levas mas é garofes; se declarando-se xaringado ante um revés e marafado na infâmia, baldeado se maluco e camurso se malandro, mas grita com entusiasmo que ah roupa! quando o lance é de euforia; se roga pragas ao Céu, ao mesmo Céu a quem pede protecção e piedade; se no mais panco desatino dirige ao mar a ameaça de que o beberá de um trago se lhe nega a pescaria; e se se desmancha e enternece na lembrança da amada, distante do seu telhado, a quem tratando-a por doce escreve cartas febris com acento circunflexo e uma cedilha no c; se envolve mar e vento, o perfume de uma esteva, uma flor de amendoeira, uma gorpelha de pão, um sino de Santa Maria, um dito do Zé Aranha, uma quadra do Aleixo, um morgado, um D. Rodrigo, um tacho de papas de milho, o canto de um pintassilgo, um camone espampanante, uma alegre alfarrobeira, os cerros do Caldeirão, os pegos de uma ribeira, os sonetos do Emiliano, os versos do António Pereira, se envolve tudo isto mais os pássaros, as marés, as estrelas, as campinas, as tormentas e as flores, e mais a imensidão de sombras que lhe escurecem a mente sobre os mistérios do mundo; se aperta tudo isto num abraço estremecido, um gajo que por tudo passou, dançando o Alma algarvia de Alcoutim a Aljezur, um gajo assim faz jus ao adjectivo, ao cognome, à honraria que o proclamam algarvio. Pode até ter vindo do Porto, de Estarreja ou Castelo Branco. Se nele se veem estas marcas, esta cor, este almareio é algarvio, e está dito.

Rogério Silva

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