Um toque e um “bacalhau” à homem

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Colaboradora. Designer.

Ontem fui arranhado por um gato. O que mais doeu não foi o arranhão, foi o desprezo que ele revela. E olhem que, falando em desprezo, estou traumatizado. Há um mês que diariamente chamo gatos e sempre gozei o prazer de chegar àquela fase de os fazer arquear a coluna. Tive azar com este sacana.

Pelo que se vê, e eu senti na pele, este felídeo detestou o meu bizarro passatempo, novo de um mês, que consiste em chamar mamíferos fofinhos à minha beira. Não há cão nem gato que me escape. Normalmente chegam carinhosos, ou apenas curiosos, focinho apontado às pontas dos meus dedos. Este não. Entre tantos momentos de felicidade, tinha de haver uma exceção. Espero que continue exceção.

Esta minha nova mania de apelar ao carinho quadrúpede radica, imaginem, na pandemia. Há quase dois meses que não toco numa pessoa, elas afastam-se, dão de froques de cada vez que me cruzo com elas, andam aos ésses pelos passeios evitando tocar uns nos outros e, o pior de tudo, em mim.

Sim, há dois meses que não toco em gente. Quando num espaço público, por passada mal calculada ou simples reminiscência inconsciente, faço ensejo de tocar em alguém, recebo em troca um olhar de pavor e um desenho de sobrancelhas franzidas por cima da máscara. Às vezes até um guinchinho mal dissimulado, abafado pelo adereço facial.

De tantas saudades de gente, virei-me pois para os animais. De tanto confinamento, isolamento, falta de coabitantes no meu lar, sei que se resume aos mamíferos peludos a minha possibilidade de contacto carinhoso com seres vivos.

Sim, inevitavelmente serei daqueles que, já na próxima semana, quando abrirem os restaurantes, serão afastados para dois metros de distância de todos os restantes comensais. Não tenho coabitantes, vivo sozinho. Espero até que, com tanta fome de afeto, não me dê um vaipe e dê por mim a agarrar na mão da empregada mesmo por cima do silicone da luva, empregada que será o único ser vivo autorizado a aproximar-se de mim no espaço da casa de comidas. Ironicamente, acabarei expulso, ou identificado pelas autoridades, por ter tanta fome (mesmo que só de carinho) no interior de um restaurante?

Mesmo os amigos com quem vá eventualmente almoçar, não sendo coabitantes, almoçarão a dois metros de mim. Seremos seres segregados. Gritaremos em vez de falar. Os restaurantes deixarão de ser espaços de intimidade e sussurro a não ser para os coabitantes, quer dizer para os que já deveriam estar fartos uns dos outros! E que em casa não sussurram, gritam! Pelo contrário, serão espaços de algazarra, berreiro e palratório às escâncaras. Deixará de haver segredos, mesmo que entre namorados desde que não morem na mesma casa. Fora dos restaurantes, tudo bem, “queres na tua casa ou na minha”, mas a pornográfica distância de até 199 centímetros jamais será possível no espaço público. À luz da lei, não são coabitantes, vão ouvir a Graça Freitas!

E o mesmo nas praias, lá para meados de junho. Nem a um amigo poderei pedir que me passe creme nas costas. Não basta o desconsolo de viver sozinho, terei que criar uma redoma à minha volta enquanto apanho banhos de sol. Nem um amiguinho quadrúpede poderei levar para o areal. E falar com gente de outras casas, mesmo que amigo ou familiar, só mesmo aos gritos, com o vento teimando desviar a direccionalidade das ondas sonoras. A praia inteira vai saber o que digo menos o que deveria ser o recetor.

No fundo, o desvio patológico da minha meiguice para gatos e cães mais não é do que “ir aos treinos”, para matar saudades de um belo roçar cutâneo entre humanos. Nem que isso não passe de uma simples osculação facial ou até (ai que saudades!) de um belo “bacalhau” à homem!

João Prudêncio

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