Vamos salvar a cabra Algarvia!

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Ainda há 15 anos rondavam as 4.000, hoje não chegam a 3.000. E o número de rebanhos desceu para metade. As cabras da raça Algarvia, raça autóctone adaptada à região que aqui foi apurada há 150 anos, está em vias de extinção. O JA foi à procura das suas características, produtos e do que leva os produtores a abandonar a criação destes ruminantes. E também dos esforços das autoridades regionais para salvar os poucos rebanhos que restam

O Algarve assiste nos últimos anos a um decréscimo muito significativo da criação de caprinos, atividade que muito contribuiu para a fixação de famílias rurais, baseada na comercialização dos seus produtos (cabritos, leite e queijo). Atualmente, os caprinos da raça Algarvia não passam dos 2.850 animais registados no Livro Genealógico, o que corresponde a cerca de 20% do efetivo caprino da região. A cabra da raça autóctone Algarvia está à beira da extinção, de acordo com os especialistas e produtores com quem o JA falou esta semana.


Segundo João Cassinello, técnico da Direção Regional da Agricultura e Pescas (DRAP), que tem acompanhado o setor, “a raça Algarvia é uma das seis raças autóctones nacionais e é explorada atualmente por 51 produtores. Uma raça que se distingue das restantes etnias do país, entre outras características, pela sua pelagem de cor predominantemente branca, com pelos de vários tons de castanhos ou pretos, disseminados irregularmente ou agrupados em malhas definidas, e por serem animais relativamente corpulentos, com peso vivo de 40-50 kg para as fêmeas e de 60 a 80 kg para os machos. Além da sua boa vocação leite-carne, uma das suas principais caraterísticas é a sua elevada rusticidade, ou seja, a sua boa adaptação à zona onde é explorada, que é principalmente a serra algarvia, onde as condições edafo-climáticas condicionam fortemente o tipo de pecuária a desenvolver, especialmente ligado a sistemas predominantemente extensivos”. Nem isso a salva da quase extinção.


“Para dar uma ideia, nos últimos 15 anos, na nossa região, a redução do efetivo foi da ordem dos 30% e de cerca de 50% das explorações, em linha com o despovoamento a que estamos a assistir nas áreas de mais baixa densidade”, decréscimo que tem ocorrido a nível nacional e não apenas no Algarve, já que há rebanhos disseminados um pouco por todo o País. Contudo, a grande maioria está no Algarve”, refere o técnico da DRAP.


Na região, os caprinos da raça algarvia estão sobretudo concentrados nos concelhos de Alcoutim e Castro Marim, que têm cerca de 30 a 40 rebanhos, segundo disse ao JA o produtor Nuno Coelho (ver caixa), referindo que há rebanhos um pouco por todo o Algarve, em Loulé, Aljezur, Lagoa. “Há alguns no Alentejo, há um lá mais para cima no centro do País, e há também em Espanha e França”, sublinha o produtor de 47 anos, que põe o dedo na ferida da pouca dimensão da raça no Algarve, face a algumas das restantes cinco raças autóctones do País (charnequeira, preta de montesinha, serpentina, bravia e serrana): “Há produtores que têm investido noutras raças ou transformado os seus rebanhos em raças mais produtivas e com maior garantia de rendimento”.


De facto, a cabra algarvia, além da sua boa adaptação às condições do meio em que é explorada, apresenta uma boa vocação para a produção de leite e carne (cerca de 250 litros de leite/lactação e 2 cabritos/ano) mas há outras raças quantitativamente mais produtivas, embora mais deficitárias em qualidade, como enfatiza Nuno Coelho: “Os espanhóis, por exemplo, têm raças que dão muito mais leite que as de raça algarvia, mas o que se encontra é menos proteínas no leite e menos gordura. Elas produzem mais e esses fatores de proteína e gordura, que dão o rendimento queijeiro, têm menos quantidade. O leite é mais aguado”.

Apuradas quase no final do século XIX, as cabras de raça Algarvia têm vindo a decrescer nos últimos anos e hoje são menos de 3000

Dois ciclos reprodutivos, leite todo o ano


O grosso da produção leiteira dos concelhos de Castro Marim, Alcoutim e Vila Real de Santo António (concelho onde há apenas um rebanho) é transformado em queijo na queijaria da Associação Nacional de Criadores de Caprinos da Raça Algarvia (ANCCRAL), situada no Azinhal, concelho de Castro Marim. Neste momento transforma cerca de 800 litros de leite por semana, mas na primavera – quando abundam as pastagens e os animais já pariram e criaram as suas crias – a produção semanal chega aos 1500 litros.


“Os produtores que nos fazem a venda de leite são cerca de 14, de Castro Marim e Alcoutim na época da pastagem, mas agora vêm uns seis”, explica a engenheira agrária Célia Marques, técnica da associação desde 2007. Enfatiza que, se nesta época há produção queijeira na associação criada em 1991, é porque já vai havendo quem divida o ano em dois ciclos de criação: “Temos alguns produtores que alteraram a época de produção das cabras: metade começa a parir agora, outra metade no verão. E esses produtores têm sempre leite. Só que alguns mais idosos acham que devem ter sempre cabritos no Natal e na Páscoa.

Então há épocas em que temos muito leite, em abril e maio. Agora, no outono, fazemos 700 a 800 litros”, afirma a técnica ao JA.

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Com escoamento assegurado para o litoral da região algarvia, o queijo é vendido em fresco e tem uma qualidade superior à de outras proveniências, o mesmo acontecendo com o iogurte:
“Tem uma lactose diferente e as pessoas que são intolerantes ao leite de vaca são tolerantes a este. A digestibilidade é maior. E o nosso iogurte não leva leite em pó e leva goma de alfarroba, é mais fácil digerir”, afirma Célia.

Célia Marques, engenheira agrária na queijaria da Associação Nacional de Criadores de Cabra de Raça Algarvia, no Azinhal, Castro Marim


O técnico da DRAP João Cassinello encontra explicação para a alta qualidade da produção leiteira no tipo de alimentação praticado pelos caprinos, “que é baseado no aproveitamento dos recursos naturais disponíveis, que consomem durante o pastoreio, o que contribui para uma elevada qualidade nutritiva e organolética do leite e consequentemente dos produtos fabricados com essa matéria-prima, razão pela qual os queijos de cabra fresco da serra algarvia são tão apreciados a nível local e regional”. Destaca também o teor proteico do leite da cabra algarvia, “elevado em caseína, o que permite um bom rendimento na transformação queijeira”.


Concordante mas mais específico, Nuno Coelho também encontra na alimentação o segredo da qualidade do leite da cabra algarvia: “Nota-se a diferença nos sabores sim, e isso tem mais a ver com o pastoreio do que com a raça. Ao longo do ano também se conseguem encontrar no leite e no queijo determinados sabores que se encontram nas plantas, como o funcho. Na época da pastagem, Inverno e Primavera, adoram flor do tojo, papoila e esses sabores também se transmitem ao leite. Aí pastam no mato. Depois há a fase em que há mais erva, antes dessa floração. Durante o verão e outono alimentam-se de pasto seco. Já a tremocilha não é bom, e deve ser evitada no pastoreio, porque vai produzir leite amargo e estraga o queijo”.

Leite e queijo curado são as próximas etapas


A pequena produção leiteira explica o elevado preço que o queijo e iogurte atingem nos mercados da região, num contexto em que, “sendo o Algarve uma região turística e aberta à inovação, começa a haver interesse pelo fabrico de novos produtos, como os queijos frescos com ervas aromáticas, curados e iogurtes, alguns já produzidos em queijarias da região”, explica João Cassinello, que contabiliza em seis essas pequenas fábricas de queijo existentes no Algarve. E, como técnico da DRAP, explica a qualidade do queijo fresco artesanal “É um queijo fabricado com leite pasteurizado, de coagulação enzimática, com utilização da flor do cardo (Cynara cardunculus, L) como coagulante, que é colhida na região. Tem cor branca, pasta mole, entre o gordo e o meio gordo e de excecional sabor e aroma”.


Uma explicação capaz de deixar água na boca, que abre portas para um futuro que, caso se consiga aumentar o efetivo desta raça, pode ser auspicioso. E uma dessas vertentes inovadoras é a cura do queijo: “Câmara de cura já temos. E a ideia é vender nos restaurantes, no futuro”, esclarece Célia Marques, que acrescenta um outro projeto: “Temos um projeto para leite, financiado pela câmara de Castro Marim, temos a noção de que aumentou a procura do leite de cabra pasteurizado e embalado”, afirma a especialista da ANCCRAL. O mercado de estrangeiros europeus residentes na região é o objetivo comercial, são eles quem mais procura os derivados dos lacticínios de cabra.

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Sem certificação à vista, nem nada que o indicie no que respeita ao leite e seus derivados, já quanto à carne de cabrito Célia Marques assevera que a certificação “pode começar por aí e ser uma saída para a raça”.


Com produção assegurada no Natal e Páscoa, o cabrito é normalmente abatido nas vésperas daquelas épocas festivas, após um período de gestação de cinco meses e de crescimento/aleitamento de dois meses. Normalmente, são os machos que são abatidos quando atingem dois meses e cerca de 10 a 12 quilos de peso, e são depois transportados para os matadouros das regiões centro e norte, já que o Algarve não tem matadouro. E os mercados de destino são na parte mais setentrional do País e não no Sul.


“Não há matadouro e isso trás custos acrescidos, o que leva a que nós vendamos sempre os cabritos mais baratos por causa dos custos de transporte. Se eles vêm cá buscá-los é porque veem vantagem nisso”, observa o produtor Nuno Coelho, para quem a alimentação também explica o êxito do cabrito algarvio fora da região: “A gente cria o animal de forma extensiva.


Mesmo nos meses em que estão confinados [no verão e outono], não comem farinhas, comem fenos e cereais. Não lhes dou granulados nem farinha. No resto do ano pastoreiam e comem só o que a natureza dá”. João Cassinello reforça: “A base da alimentação destes animais é efetuada durante o pastoreio, com destaque para o consumo de herbáceas e arbustivas naturais, o que confere uma elevada qualidade aos seus produtos”.

Nem a ajuda da Europa chega para estancar abandono


Quanto a habituar o algarvio e o turista que procura a região a consumir cabrito, Nuno Coelho sublinha que se trata, para já, de um desejo impossível: “A gente ter que os levar para o Norte, abate-los lá, trazê-los para baixo, teria custos que tornam a operação inviável”. Mesmo assim, destaca o produtor de Corte de Seda, com o produto a ser consumido a norte do Tejo, o transporte faz encarecer o preço do quilo daquela carne, o que se traduz em lucros mais baixos para os produtores algarvios.


É precisamente a falta de rentabilidade da produção que explica o progressivo abandono do pastoreio por parte das gentes algarvias, que abandonam o campo em busca de melhor vida nas cidades e no litoral: “Há muitos anos, quando o meu avô morreu, ele vendia um cabrito a um preço mais elevado do que eu vendo hoje. Ganhava mais do que eu ganho hoje e os custos de produção nem vale a pena falar. Uma saca de ração há menos de dez anos custava 6 ou 7 euros. Hoje é difícil encontrá-la por menos de 11 ou 12 euros”, explica Nuno Coelho.


Falta de expetativas que levam ao envelhecimento da população: “No Cachopo, metade da população tem 80 e tal, 90 anos. A idade normal dos residentes são os 60 e tal anos. Daqui por 10 anos metade dos residentes da zona já não existem. Eu sou o mais jovem com 47 anos”, lamenta.


Lutando contra a corrente, a DRAP do Algarve tem assegurado apoios ao setor, nomeadamente no licenciamento das explorações pecuárias e nos previstos no Plano de Desenvolvimento Regional (PDR) 2020, ao nível do investimento na exploração agrícola (capris e salas de ordenha, equipamentos de ordenha e tanques de refrigeração do leite, tratores, cercas, queijarias, etc), na instalação de jovens agricultores, assim como o denominado “prémio de ovinos e caprinos”, previsto na regulamentação comunitária, concedido sob a forma de um pagamento anual em função do número de animais elegíveis, enuncia o técnico João Cassinello.


A essas ajudas soma ainda um apoio PDR 2020, dirigido às raças autóctones classificadas em risco de extinção, como é o caso da cabra algarvia e à ANCCRAL, “que desde 1991 tem efetuado a representação e defesa dos associados no que se refere à criação, preservação e melhoramento dos caprinos de raça algarvia, contribuindo para o desenvolvimento da atividade e promoção da raça e dos seus produtos”.


Reconhecendo o trabalho da DRAP e da ANCCRAL, Nuno Coelho acha que os esforços são espúrios face à força do abandono dos campos e do interior: “Temos apoios às raças da Europa, vão financiando as associações, os produtores, as associações que gerem o livro da raça. Há uma garantia mínima de que se preserva a genética, mas depois não se faz mais do que isso”, diz, lamentando, por exemplo, a desistência por parte do Estado central das queijarias experimentais que havia em todo o País, uma das quais nas instalações da DRAP, no Centro de Experimentação do Paúl.

João Prudêncio

Um produtor de cabra algarvia
A força de vontade contra duas crises

Nuno Coelho é pastor e criador de cabras desde 2011

Desempregado em plena crise de 2011, em Lisboa, Nuno Coelho tinha 38 anos quando se decidiu por regressar a Alcoutim, onde tinha casa de família, e começou a produzir cabras. Começou com “três ou quatro cabras” e uma enorme vontade de montar uma queijaria tradicional e uma exploração caprina, sempre com a cabra algarvia em mente. O projeto abarcava 350 a 400 cabras.


Da ideia inicial de um investimento de 150 mil euros, que lhe daria apoios enquanto jovem agricultor, cedo o projeto ascendeu a 350 mil, entre equipamentos, cercas e alfaias.


O projeto acabaria por ser reduzido, mas a queijaria, que deveria dar vazão à produção excedente da região, foi aprovada e devia estar por esta altura a ser implementada. O covid19 não deixou; “Desisti do projeto há poucos dias, devido a esta crise do covid. Não me ia meter em empréstimos, etc., neste contexto”.


Agora com 120 caprinos, a vida de Nuno segue ao ritmo do ciclo reprodutivo dos animais que cria nas cercanias do Corte da Seda, a sul de Alcoutim. Com todas as cabras secas neste momento (“Não produzem nem um litro de leite”, diz), espera agora pelos finais de dezembro e Janeiro, altura em que as cabras deverão começar a parir. E já que este ano não se preocupou como Natal, como confessa, os cabritos que atingirão dois meses de vida nos últimos meses do inverno e início da primavera deverão ser “exportados” para o Centro e Norte do País ainda a tempo de servirem de repasto pascoal.


Por essa altura deverão recomeçar as vendas de leite. Para trás terão então ficado o período de secagem (as fêmeas não dão leite dois meses antes de parir, num total de cinco meses de gravidez) e o período de dois meses de aleitamento dos cabritos.


E tudo se renova em março/abril: as cercas dos 30 hectares das propriedades (dispersas) onde os caprinos viveram confinados durante quatro a cinco meses abrir-se-ão e Nuno Coelho acompanhará o rebanho pelas pastagens bravias da região. Afinal, o produtor é pastor durante metade do ano.

J.P.

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