Tenho, muitas vezes, a vontade de tentar um olhar sobre o Algarve como aquele que Cláudio Magris ensaiou sobre a Alemanha, a Áustria, a Hungria, a antiga Jugoslávia e a Roménia no admirável livro que é, «Danúbio», e, no qual o escritor fixou as reflexões e as narrativas da viagem que fez ao longo do rio Danúbio, desde a nascente, em Breg, até ao mar Negro, onde desagua.
Olhar para o Algarve, neste sentido seria encontrar um «rio» que atravessasse a região e conduzisse o viajante desde a fronteira com Espanha, a este, até ao Atlântico, a oeste.
Uso «rio» como metáfora de alguma coisa que não sei o que é. O Guadiana, o Gilão ou o Arade não entram nesse concurso. São estradas líquidas que vão da serra até ao litoral. Falta-lhes o sentido longitudinal.
O único rio que me parece responder ao desafio é de alcatrão. A Estrada Nacional 125. E esta até por oposição à autoestrada. A A22, que leva o nome do Infante D. Henrique, é uma via segregada. Está no Algarve, mas não se relaciona com ele.
Em muitos casos até restringe o horizonte de quem nela circula
aos limites do alcatrão.
Já a EN 125 vai de cidade em cidade, entra nelas, dilui-se até ao ponto de perdermos a ideia que seguimos nela. Continua pelas povoações que se estendem ao longo do seu percurso. Em muitos lugares parece que as casas vieram encostar-se à velha estrada para a verem passar.
É uma verdadeira coluna dorsal da região, com as suas vértebras
a romperam em direção à serra ou ao mar.
A EN 125 poderia ser esse «rio» como poderia ser também a luz do Algarve. Aquela luz que o escritor Raul Brandão disse como ninguém. Uma «luz animal que estremece e vibra como as asas de uma cigarra». Perseguindo essa luz poderíamos encontrar tudo o que é necessário a um viajante para conhecer o destino da sua viagem. As paredes de cal e o que elas encerram.
O rendilhado das chaminés
e a memória que nelas resiste.
A paisagem e as pessoas.
Outro rio para essa viagem poderia bem ser uma biblioteca; a Algarviana. Esse projeto de profundo cariz regionalista que existe sem existência.
Não se pense que a vuiagem ao longo do Danúbio, se fez sem recurso a leitura. E que bela viagem proporcionaria a leitura de obras como a «Crónica da Conquista do Algarve», as «Duas descrições do reino do Algarve», do séc XVI, de João Batista da Silva Lopes e Henrique Fernandes Sarrão ou livros mais próximos de nós como «O Algarve na Perspetiva Ecológica», do prof. Gomes Guerreiro. Ou duas obras de ficção de Lídia Jorge que nos introduzem no Algarve contemporâneo; «O Dia dos Prodígios» e «O Cais das Merendas». Ou embarcar num espaço mais profundo do sentir com a poesia de um livro admirável de António Ventura e Fernando Cabrita; «Visões de Marim».
O viajante que tiver à mão o muito e disperso que se escreveu sobre a região – lembro os dificílimos livros dos irmãos Palma-Dias – pode acalentar essa esperança de fazer no Algarve uma viagem literária como o Cláudio Magris fez na Europa central, Bruce Chatwin na Patagónia ou Pedrag Matvejevitch ao longo do Mediterrâneo.