As coisas que devem ser ditas – 4

Depois do falecimento de Nuno Júdice, a notícia que abala a literatura portuguesa e a que se faz no Algarve é a da morte de Casimiro de Brito.

A Grande Ceifeira não se tem poupado a esforços para colher, quase sem intervalo, os grandes escritores que a partir do sul abriram tantos novos e diversos caminhos à linguagem poética portuguesa nessas décadas de 60, 70 e 80 do século passado.

Casimiro de Brito é uma dessas vozes que brindou à escrita nacional uma frescura de renovação; e que no seu percurso literário deambulou, explorando-as e enriquecendo-as, as vertentes do pensamento livre, da linguagem poética iniciática, e também do orientalismo, dos haikai, de Bashô, dos livros escritos a quatro mãos, do seu Eros Mínimo, da sua audiência com a Imperatriz do Japão; mas também da escrita fragmentária, dos aforismos, da linguagem minimalista.

Tive oportunidade de trocar impressões com Casimiro de Brito sobre estes temas, ora quando no II Encontro Poesia a Sul, em 2016, expus um trabalho de homenagem ao seu trajecto poético ante um público interessado; ora quando apresentei na Feira do Livro de Olhão um dos seus livros; ora quando nos encontrámos no Parque dos Poetas em Oeiras em 2019, juntamente com outros autores, na apresentação da Antologia editada em Espanha de 19 Poetas de Portugal onde nos haviam incluído.

Agora que Casimiro de Brito, o poeta a quem tanto devemos, já não está connosco, penso que melhor que lamuriosas condolências ou lamentosos pêsamos melhor o homenageamos relembrando a sua obra. Deixo-vos pois aqui, porque estas coisas cada vez mais devem ser ditas, o que escrevi, penso que em 2017, sobre o seu livro APOTEOSE DAS PEQUENAS COISAS, então editado pela Lua de Marfim em 2016

APOTEOSE DAS PEQUENAS COISAS, de Casimiro de Brito

O que há de mágico na escrita de Casimiro de Brito é essa sua capacidade de, em curtas e poderosas frases, nos dar todo o sentido do universo, toda a vasta interrogação do homem sobre o mundo; e sem nunca perder a essência poética mais profunda e o sentido último da felicidade de viver.

Capacidade aprendida, decerto. Adquirida como um bem imaterial que se atesoura por longas experiências de vida e de escrita, que se vão apurando, depurando, sublimando ao curso de anos e de obras. É um caminho, um dô, uma via. Neste caso uma via que se percorre palavra a palavra, concentrando-se o verbo sobre si próprio; calando o desnecessário, a poluente gordura de palavras que nada acrescentam; e limitando/ delimitando/ despoluindo a frase poética — e com isso a imagem, que resulta assim mais forte, mais plena – até ao que verdadeiramente importa: essa língua comum que a natureza imensa fala. “As árvores as pedras o rio falam a mesma língua”, como Casimiro escreve no poema 58 de A Via do Mestre. São essas mesmas águas que “correm mas ignoram a dialéctica do caminho: bebem o chão e basta”.

No fundo, uma busca pela alma mesma da poesia, esse espírito universal seguramente presente ou ao menos pressentido no caminho que fica para lá da ponte; e em que cada palavra que se evita ou que se afasta é a portagem a pagar, como na via de Lao Zi, o Mestre. Paga-se a portagem em vida vivida; e paga-se-a em palavras gastas. E após a travessia resta – vai restando – o essencial, o ponto fulcral, o local nirvânico onde silêncio e palavra se encontrarão e resumirão como uma coisa só, indizível – e por isso dita.

A travessia, no entanto, não cessa, mesmo quando assim parece. A ponte é longa; e é o atravessá-la que constitui a aventura de estar vivo e de continuar vivo. Não o estar vivo apenas organicamente, biologicamente; mas sim integralmente vivo na conjunção e compaginação de todas as funções vitais: corpo, alma, consciência, incognoscibilidade. Olhos abertos, mente aberta, coração aberto; e por eles confluem ao poeta as ondas inesperadas da intuição, sobre o intelecto já poeticamente apurado (por leituras, viagens, estudos, encontros), e sobre o instinto que desde a primeira hora respira poesia, digere poesia, reproduz poesia, não como se de uma segunda natureza animal se tratasse, mas exactamente da mesma única matriz natural da criatura poética.

A APOTEOSE DAS PEQUENAS COISAS, último livro de Casimiro de Brito, é o mais recente passo desse movimento de progressão para o centro de todas as coisas. Progressão que se faz por palavras, mas deixando-as que fiquem, vagas, pelo caminho, perdurando na sua eterna mobilidade e no seu eterno repouso. Recordemos Burnt Norton, nos Four Quartets, de Elliot : “At the still point of the turning world. Neither flesh nor fleshless; Neither from nor towards; at the still point, there the dance is, But neither arrest nor movement. And do not call it fixity, Where past and future are gathered. Neither movement from nor towards, Neither ascent nor decline. except for the point, the still point, There would be no dance, and there is only the dance.”

Também o caminho que Casimiro de Brito vem traçando na sua escrita se dirige indubitavelmente a um “still point of the turning world”, esse complexo conceito em que se confundem o universo e o nada de onde ele nasce, o ocidente e oriente, eros e a natureza, o passado e o futuro numa linha contínua de tempo, a bíblia e os vedas, a sabedoria dos mestres e a paz dos bichos da terra.

E essa peregrinação “em direcção a”, que começou no Algarve, o Algarve Lugar Onde (para lembrar um título do autor), espraiou-se de seguida universalmente.

Pela Europa primeiro; pelo planeta, depois. No percurso, Casimiro encontra a sabedoria oriental; e a fórmula poética da concisão: o haiku. “Conheci uma poética que hoje considero ser a mais bela de todos os tempos (comparável só às nossas cantigas de amigo); entrei num campo de trabalho como eu gosto, a longo prazo, para sempre; entrei na vida (física, mental, sensível) de um ser celestial, a minha amiga japonesa, enfim, coisas bonitas que mudaram o meu caminho”, como esclareceu numa entrevista de 2005, citada por Maria João Cantinho.

E a sua obra poética, que já era desde a Poesia 61 um renascimento da linguagem e uma ressurreição da palavra, torna-se então, e agora mais do que nunca, o método absoluto de busca e de construção do poema e do poeta. Homem e obra, a passo, atravessando a ponte. “Nunca mais deixei de respirar essa poesia e, sobretudo, nunca mais deixei de pensar (e de fazer) que é preciso conhecer mais do que a nossa tradição poética”, dizia na mesma entrevista. E por isso a sua caminhada, ao fazê-lo conhecer mais, fá-lo sentir mais; e por isso o autor e a obra se tornam, cada um e à uma, cada vez mais universal, mais abrangente, mais em fraternidade com tudo e com todos. E mais cerca da felicidade, que é o que cada um sinta ser. Do mesmo modo se depura a linguagem, o léxico, a paleta verbal onde as cores e os matizes estão todos mas conciliando-se, celebrando na sua aparente simplicidade a sabedoria que os anos e o caminho trazem. “Quanto mais perco mais sei”
(Fragmento 1481).

Cada passo ensina que a todo o momento deixamos coisas para trás. “Viúvo sou do ar que respirei” (Fragmento 929). Partes de nós mesmos que se desprendem e se vão. “Nadei naquelas águas, nadei naquelas praias. Senti a glória de grécias que houve em tempos que já lá vão” (Fragmento 531). Cada progressão ensina que vamos dando e recebendo. “Quem foi vida? Quem foi pedra? Sei que o rio bebe na pedra e que a pedra bebe no rio” (Fragmento 1178). E perdendo. “Derrama-se um pouco do meu sangue. E não sei de quem ele é sangue agora. Ou outra coisa”. (Fragmento 1467). “Quantos sou? Vão ficando pelo caminho”.
(Fragmento 1535)

Cada fragmento, um mundo; e como mundo, com a sua própria cosmogonia, que sobre passa a aparente desordem, a aparente enumeração caótica e sem nexo. A via permite esse fenómeno de intemporalidade. O canto eleva-se acima dos dias, das circunstâncias e dos detalhes desnecessários. Torna-se intranscendente qualquer ordem pré estabelecida. Qualquer dos fragmentos, como se fossem os pontos luminosos de que falava Pound, compõem a imagem global e ao mesmo tempo a sua própria imagem. O Uno e o Múltiplo. A Unidade e a Diversidade. O zero e o Infinito. Podem figurar na ordem em que o livro os dispõe. Ou em qualquer outra. O seu significado mantém-se porque no conjunto os fragmentos equilibram o universo interior da poética de Casimiro, e a sua filosofia de coisas simultaneamente imensas, e simples, e essenciais; e a sua aparente desorganização, a sua enumeração e listagem caóticas, são porém uma Ordem inalterável ainda quando se a altere nas posições relativas de cada parcela. Cada fragmento vale, per se, como um universo de si mesmo, com as suas palavras planetas, as suas palavras constelações, as suas palavras luas que são ao mesmo tempo o retrato do infinitamente pequeno e do infinitamente grande.
E o canto assim apurado revive na mínima expressão do verbo, no mínimo hausto da respiração. A cada exalação tocam-nos memória, filosofia, encantamento, felicidade, saudades do futuro.

“A morte aprende-se. Todos os dias a primeira lição” (Fragmento 433). “Que luz te veste quando te despes?” (Fragmento 739). E um regresso à terra, à que fica para lá da ponte na qual Lao Zi pagou a portagem com o seu poema. “Sinto-me, caiado de silêncio, uma casinha à beira do abismo” (Fragmento 1236). “O trigo renasce na minha boca” (Fragmento 1669). “As mãos na terra. Sujo-as ou limpo-as?” (Fragmento 1233). E o grande reconhecimento da inevitável mudança. “Não se lê um livro. Tal como não se lê essa coisa flexível a que chamamos mundo. Vamos lendo nos livros e no mundo que, a cada leitura, se outram.” (Fragmento 981).

E sempre, sobre tudo, a infalível presença de Eros, imanente e perene, que o leitor atento encontrará pairando sobre a generalidade dos Fragmentos.

Uma poesia, pois, construída palavra a palavra, universo a universo. E todas elas, palavras, contam. E todos eles, universos, se expandem ininterruptamente até ao fim dos tempos, até ao final silencioso dos mundos. Até esse still point of the turning world, onde o poeta e o poema se identificam num só e onde cada hausto é um verso. E onde colhe toda a propriedade essa pérola de concisão e humildade, lição maior para tantos: “Escrevo como quem respira. Não preciso fazer constar que respiro”
(Fragmento 202).

APOTEOSE DAS PEQUENAS COISAS, de Casimiro de Brito. Um livro maior da literatura portuguesa e europeia, numa edição da Lua de Marfim em 2016

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