O Outro somos Nós

Salvador Santos
Salvador Santos
Salvador Santos, nasceu em Chaves, no ano de 1979. Vive no Algarve desde os quatro anos. Frequentou o curso Estudos Portugueses na Universidade do Algarve. Foi editor na Sul, Sol e Sal. É autor dos livros de poesia «Selvagem» e «Cartographya»

Há uns tempos circulou pela capital um panfleto de um partido político insurgindo-se contra a possibilidade da autarquia ceder um terreno municipal para a construção de uma mesquita.

Os argumentos eram muitos e diversos.
País laico, diferença cultural, crise da habitação, valor do terreno.

A presença, entre nós, de imigrantes de outras confissões religiosas é uma evidência.
Se numa primeira fase estavam confinados às explorações agrícolas agora ocupam todas as geografias da cidade. Estão no comércio, nos transportes, nos hospitais, no espaço público. As reações ao Outro não tardaram a ganhar expressão.

Não é garante de paz e solidariedade entre os homens o conhecimento das diferenças culturais que há entre o Ocidente e o Islão.
Ao reino da intolerância pouco importa o contributo da herança árabe para a formação da nossa identidade. A nossa língua, a dança, a música, a gastronomia, a arquitetura, o urbanismo, a literatura e o saber estão marcados pela tradição árabe.

Os avanços na ciência e na medicina, a tradução de obras clássicas, o sistema de numeração. Na agricultura foram determinantes as formas de regadio que nos deixaram, a introdução de novas plantas e desenvolvimento de culturas.

De pouco serve a História contra as necessidades do presente, os ódios, a incompreensão, a não aceitação. Em todos os tempos aquele que aperta a mão do inimigo ganha o ódio entre os seus. Lembro uma figura tutelar do sufismo no Al-Andaluz, Abu’l-Qâsim Ahmad Ibn al-Husayn Ibn Qasi. Iniciado, místico, rei de Mértola, mahdi luso-muçulmano.

Apesar do fracasso da História para tratar as doenças que afetam o presente Ibn Qasi interessa ao Algarve. O ribat da Arrifana, espaço arqueológico, classificado com Monumento Nacional desde 2013 e considerado como uma das mais importantes descobertas arqueológicas do século XXI, escavado por Mário e Rosa Varela Gomes, espera a construção do centro interpretativo.
A presença árabe na região, num período muito conflituoso de disputa territorial, ganhará a visibilidade que lhe é devida.

Os ribāt eram construções, desenvolvidas paralelamente à difusão do pensamento sufi e utilizadas como centros de instrução e reunião, onde se estudavam manuais da mística islâmica e onde viviam os devotos e eremitas que se entregavam a uma vida austera, com práticas ascéticas.

Outro motivo que devia colocar Ibn Qasi como figura incontornável da nossa cultura é um livro quase sempre esquecido, quando olhamos para o passado literário que aqui teve chão.

Kitab khal. alna.layn wa-qtibas al-nur min maw.i. al-qadamayn (“O Livro sobre a Remoção das Duas Sandálias e a Captação da Luz do Lugar dos Dois Pés”), manuscrito que se encontra na Biblioteca Suleymaniya de Istambul, manual místico e filosófico dos Muridinos «escrita dentro da tradição sufi, da cavalaria iniciática da Futuwah e do templarismo, da sabedoria esóterica e textos do islamismo, das tradições pictográficas dos Irmãos da Pureza – cujos escritos foram, durante vários séculos, o coração oculto da gnose e da Arte islâmicas – e do pensamento tão vigoroso e lúcido de Al-Ghazalî», no dizer de José Carlos Fernandez, no prólogo do Livro «As Sandálias do Mestre » de Adalberto Alves.

A liderança política e religiosa de Ibn Qasi desenvolve-se no contexto da expansão do poder almoáda à Península Ibérica e da aliança islamo-cristã realizada com D. Afonso Henriques.

«Personalidade religiosa de grande relevo, são-lhe atribuídos dons de clarividência, milagres de toda a espécie, inclusive a peregrinação a Meca, ida e volta, numa só noite. No auge desta exaltação religiosa proclama-se a si próprio al-Mahdi.», escreve Artur Goulart de melo Borges e acrescenta; «Como Senhor de Mértola, Ibn Qasi mandou cunhar moeda própria. O dinheiro corrente almorávida já tinha dado aso a algumas perturbações. Conta-nos Ibn al-Khtib, que Ibn Qasi, quando proclamado Imam, distribuía dinheiro com grande liberalidade. Dizia-se inclusivamente que era um milagre pois o recebia diretamente de Allah».

D. Afonso Henriques enviou-lhe um cavalo, um escudo e uma lança. Terá sido nessa lança que a cabeça de Ibn Qasi, depois de separada do corpo, foi exibida aos gritos «Aqui está o mahdi dos cristãos». Não lhe perdoaram a aliança com os cristãos.

Quando vou à janela imagino entre os prédios homens a curvarem-se como ervas batidas pelo vento na paisagem sozinha. Recebem o sopro de deus e vergam-se, a horas certas, na praça convertida em mesquita, como a ondulação verde do vento.

Não preciso entrar no universo difícil da imaginação para perceber o templo.
Está lá, como se desenhasse as linhas de um cubo no vidro alto da marquise e depois, colocasse os olhos a uma altura em que os fiéis ficassem dentro dos contornos.
Olho para baixo e percebo, de imediato, as paredes e os seus esguios minaretes.
É uma realidade tão concreta como o movimento pendular das orações. A bússola exata dos seus corpos a indicar a direção de Meca.

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