Variações sem rumo definido

Salvador Santos
Salvador Santos
Salvador Santos, nasceu em Chaves, no ano de 1979. Vive no Algarve desde os quatro anos. Frequentou o curso Estudos Portugueses na Universidade do Algarve. Foi editor na Sul, Sol e Sal. É autor dos livros de poesia «Selvagem» e «Cartographya»

«A minha rua tem o mar ao fundo», mas os prédios não deixam que os meus olhos cheguem lá. O litoral da minha janela é um espaço cego. Interdito.

Os prédios cresceram em altura e foram-se aproximando mais possível do oceano. Avançaram da mesma forma que os espetadores de um festival se aproximam do palco. Cada um procura o melhor lugar para conciliar o azul do mar com a azul do céu.

O poema de António Pereira onde se foi buscar o tão usado título tornou-se uma espécie de marcador da identidade algarvia. O vínculo natural ao mar e à tradição marítima. Mas o poema de António Pereira é também a exaltação de uma perda. Ao invocar essa rua com o mar ao fundo essa memória conflitua com as alterações fisionómicas que o turismo, sobretudo o turismo, promoveu na região.
A expansão urbana, as linhas apartamentos ao longo das praias mais apetecíveis em Quarteira, Portimão, Armação de Pera.
A invasão das arribas ao longo da costa.

O poema é de uma disposição mental anterior ao caos imobiliário que veio destruir a imagem de um Algarve idílico, branco, raso, agrícola. De amendoeiras, figueiras e vinha a estenderem-se até às dunas de areia.
O Algarve de pequenas povoações marítimas pautadas por barcos de pesca estagnados na areia da praia.

Nesse sentido a «rua» de António Pereira ainda tem afinidade com o discurso poético de Ibn Ammar. Os dias de vinho e de luxúria no Palácio das Varandas:

“…morada de leões e de gazelas
salas e sombras onde eu
doce refúgio encontrava
entre ancas opulentas
e tão estreitas cinturas.
Moças níveas e morenas
atravessavam-me a alma
como brancas espadas
como lanças escuras.
Ai quantas noites fiquei,
lá no remanso do rio,
preso nos jogos do amor
com a da pulseira curva,
igual aos meandros da água,
enquanto o tempo passava…
ela me servia vinho:
o vinho do seu olhar,
às vezes o do seu copo,
e outras vezes o da boca…”

O mar, como visão, tornou-se um valor de transação demasiado alto. A minha rua passou a ter o Algarve ao fundo.

De outro tempo, ou de outra intenção, é o poema de Fernando Cabrita, «Ça c`est ma riviére», editado pela CanalSonora em 2015, com ilustrações primorosas de Joana Rosa Bragança, onde o grande assalto capitalista aos valores naturais da região instam o poeta a insurgir-se contra a expulsão da população da terra onde sempre viveu. As apetecíveis baixas das cidades, as zonas limítrofes das águas ou dos grandes arvoredos, os montes de vistas desafogadas, são letreiros de agências imobiliárias a levantar o dedo às fortunas internacionais.

Aos naturais, àqueles que foram sempre daquele lugar, por gerações e gerações, resta-lhe a periferia da riqueza e de uma vida digna e confortável. Um nono andar qualquer com marquise de alumínio cinzento e vidro martelado.

Uma casa de onde se sai para fazer camas, servir nos restaurantes, entregar carros nas “rent a car”, regar a relva dos campos de golfe, misturar álcool nos bares…

É bem certo que a vivendas com piscina e Teslas de algarvios bem-sucedidos, nos negócios e nas funções públicas, mas não são desses que dão conta os relatórios preocupantes sobre a pobreza no Algarve.

Mesmo com problemas de água, de transportes, de saúde, de habitação e de emprego aquele Algarve que é um fardo para quem cá vive com um ordenado continua a ser um paraíso para quem tem acesso ao melhor que a região ainda tem para oferecer.

Onde está o Algarve de Oliveira Martins, descrito na sua «História de Portugal»?

«…o algarvio desconhece a aspereza da vida: nem os frios o obrigam à indústria para se vestir, nem a fome ao duro trabalho da enxada para comer. Enquanto voga sobre o mar, mercadejando, pescando, contrabandeando, crescem-lhe no campo a figueira, a amendoeira, a laranjeira, cuja seiva o sol se encarrega de transformar todos os annos em fructos. A alfarrobeira nas encostas da sua serra, a palma pelos vallados, pedem apenas que lhes colham os fructos e os ramos; e o mercador, no seu barco, ao longo da costa, espera as cargas, para as trocar por dinheiro».

Deixe um comentário

Exclusivos

Pescadores envelhecem e jovens não querem continuar a arte do mar

A ligação do país e da região ao mar é, indiscutivelmente, uma das marcas...

Olhão mais rico em cultura com a República 14

República 14 é uma associação cultural que reside na cidade de Olhão, desde outubro...

Prometido plano de saúde para o verão está no “segredo dos deuses”

O número de habitantes no Algarve quadruplica durante o verão, o que, à primeira...

Investigadores algarvios fazem história na Antártida

Pedro Guerreiro, João Brazão e Rita Costa foram os escolhidos para representar o Centro...

Deixe um comentário

Por favor digite o seu comentário!
Por favor, digite o seu nome

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.