“O ato de partilha mais generoso de Camões foi o da Língua”

ouvir notícia

O ato de partilha “mais generoso” na busca de Camões foi “a Língua portuguesa”, que o poeta aperfeiçoou, afirmou esta semana a comissária das comemorações do 500.º aniversário do nascimento do autor d’”Os Lusíadas”.

“Talvez o ato de partilha mais generoso dessa busca de Luís de Camões e do Portugal do seu tempo tenha sido a Língua portuguesa, a Língua que o poeta modelou e aperfeiçoou em versos de rara fineza”, afirmou Rita Marnoto, a comissária-geral da estrutura de missão responsável pelas comemorações do quinto centenário do nascimento de Luís de Camões.

A também professora catedrática da Universidade de Coimbra discursava na Sala dos Capelos da Universidade de Coimbra, na cerimónia de arranque das comemorações do quinto centenário do nascimento de Camões, iniciativa que integra o programa oficial do 10 de Junho.

- Publicidade -

Perante uma plateia onde estavam o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o presidente da Assembleia da República, José Aguiar-Branco, e o primeiro-ministro, Luís Montenegro, Rita Marnoto realçou a projeção da obra de Camões, quer no tempo quer no espaço, colocando o poeta no “patamar dos clássicos”, dos grandes autores “capazes de surpreender o seu próprio tempo e de continuar a questionar e a inquietar, ao caso, cinco séculos de história, até hoje”.

No seu discurso, a catedrática destacou também a forma como o Oceano Atlântico passou a ser navegado, ao longo de cinco séculos, “através da língua portuguesa”, através de viagens de poetas, nomeadamente de Camões.

No entanto, Rita Marnoto, não esqueceu que essas viagens de “experiência conhecimento” naquele oceano, foram também “viagens trágicas de negreiros, de tráfico humano e de corso, de deportação e de sofrimento”.

“Viagens de ‘morabeza’ [regionalismo do crioulo cabo-verdiano associado a amabilidade] e de saudade, em que a chegada nunca corta as amarras da partida”, acrescentou.

Na sua intervenção, a comissária-geral realçou ainda a forma como Camões era um “ser insatisfeito”, que indagava pelos “meandros da intimidade, entre sonhos e desilusões” e que se destacava por refletir sobre o confronto “entre opostos ou a errância”.

Rita Marnoto notou também a forma como o poeta contamina a tradição literária, seja quando põe “uma mulher, Vénus” a achar a frota de Vasco da Gama, no final da sua viagem, ou quando põe em causa a ideia de beleza, tradicionalmente assente numa mulher “loura e com pele clara”.

“Os cabelos escuros de Bárbora e a sua pretidão são inconciliáveis com o padrão literário”, referiu a especialista, considerando que, o fascínio de Camões é tal, que o leva a “operar uma inversão do ideal de beleza”.

“Os seus cabelos pretos são tão belos, que há que rever a opinião que dá primazia aos louros, e a cor da sua pele faz com que seja a neve a querer mudar de cor”, notou.

Antes da comissária-geral, discursou o reitor da Universidade de Coimbra, Amílcar Falcão que salientou a ligação que o poeta terá tido com a cidade, que é “uma forte candidata a ser reconhecida como lugar de formação do maior poeta de língua portuguesa”.

Na sua intervenção, Amílcar Falcão considerou que “a pátria de Camões não era tanto o Portugal real, mas o Portugal sonhado”.

“O Portugal tornado mundo na ilha dos amores. Nessa ilha sem tempo e sem lugar, onde apenas conseguem chegar os que superam os medos e se superam a si próprios”, vincou.

Também o reitor da Universidade de Coimbra destacou a “causa da língua portuguesa” como uma das causas que o poeta serviu, sublinhando que uma das grandes tónicas da obra de Camões foi “a busca do conhecimento, e a certeza de que essa será sempre uma busca inacabada”.

- Publicidade -

Deixe um comentário

+Notícias

Exclusivos

2 COMENTÁRIOS

  1. Não, o Camões que a maioria de nós conhece não foi apenas o Príncipe dos Poetas, cuja obra poética se movimenta com o mesmo engenho e talento, quer nos meandros doces do lirismo da alma humana, quer no fragor épico das maiores tormentas enfrentadas pelo Gama.

    A par do Camões literário, que coteja grandes sumidades, como Goethe, Shakespeare, Cervantes, Petrarca, Virgílio ou Dante Aliguieri, houve igualmente o Camões frequentador de lupanares, o boémio, o amante incorrigível do Belo Feminino, o soldado, o brigão, conhecido como “Trinca-Fortes, que nunca virava as costas a uma boa rixa.

    Foi esse carácter arruaceiro, que, para seu mal, no dia do Corpo de Deus, em 1552, acabado de regressar de Ceuta – onde perdera um olho, devido a uma chispa saida do disparo de uma peça de artilharia, ao seu lado –, quando passeava entre o Rossio e a Rua das Portas de Santo Antão e viu dois mascarados – que reconheceu serem seus amigos – envolvidos numa altercação com um criado do Paço, de nome Gonçalo Borges, o fez, de imediato, puxar da espada, com que feriu este último, facto que ditou o início de um período negativo, que o marcou até ao final da sua vida.

    Como resultado do ferimento de Gonçalo Borges, foi atirado para a Cadeia do Tronco, antigo cárcere que se situava no actual Pátio do Tronco, com acesso pela Rua das Portas de Santo Antão (a do Coliseu dos Recreios, para quem não esteja familiarizado com a nossa Lisboa).
    Aí permaneceu vários meses, apenas saindo por mercê de carta régia, que estabelecia, como castigo, o destino da Índia …

    Partiria para a Índia, no ano de 1553, na nau São Bento, tendo conhecido todo o rol de dificuldades e atribulações do que eram as viagens marítimas do tempo – lapidarmente espelhadas no tema de Fausto “O Barco Vai De Saida” –, com trombas-de-água, os assustadores fogos de santelmo, enjôos, escorbuto ou tempestades épicas enfrentadas com as “cascas de nozes” das naus de então.

    Os estudiosos crêem que os incidentes relatados em “Os Lusíadas”, que rodearam a primeira viagem à Índia de Vasco da Gama, mais não devem ser que os que o próprio Camões experimentou na nau São Bento.

    Após todo um universo de incidentes infelizes, nas partes do Oriente, Camões decide regressar à Pátria, aproveitando uma boleia que lhe é oferecida pelo capitão de uma nau de torna-viagem, com quem acaba por se incompatibilizar, no que resulta ser despejado na Ilha de Moçambique, só e sem um real, onde o irá encontrar o amigo Diogo do Couto, que se encarregará de custear a parte restante do seu regresso a Lisboa.
    É através de Diogo do Couto que sabemos que Camões terá escrito outra obra (em prosa e verso), o “Parnaso”, que, consta, lhe terá sido furtado.

    Em Lisboa, passará a viver, numa “pobre casita”, junto ao antigo Arco de Santa Ana, vivendo os seus últimos dias de esmolas angariadas por Jau, um seu companheiro de infortúnio.
    Morrerá, só, miseravelmente só, sem um lençol a cobri-lo, vitimado pela sífilis, abandonado por todos, numa cama do antigo Hospital Real de Todos os Santos, que se localizava entre o Rossio e a Praça da Figueira actuais, sensivelmente no local onde existiu – até há algum tempo atrás – a icónica Pastelaria Suiça, que tantas vezes frequentei.

    A ignomínia sobre o falecimento do Poeta que, tanto e tão alto, cantou a sua Pátria, tocou as raias de que até dos seus ossos se perdeu o rasto, pelo que o seu túmulo, no Mosteiro dos Jerónimos, nada mais é do que um modesto e mero cenotáfio, uma vez que é vazio dos seus restos mortais …

  2. Acresce ainda referir algumas breves palavras, como explicação para a crónica situação de debilidade económica do Poeta.
    Camões provém de uma família da pequena nobreza portuguesa, cujo titular, o trisavô Vasco Pires de Camões, se expatriara na Galiza, devido a que, num desentendimento, tinha matado um fidalgo português poderoso.

    Aquando da crise dinástica de 1383 / 85, as várias famílias definiram-se ou pela defesa do lado castelhano ou, contrariamente, tomando o partido do Mestre de Avis.
    Vasco Pires de Camões apostou, como se costuma dizer, “no cavalo errado” e apoiou as pretensões de Castela ao trono português, o que levou a que, D. João I, logo que assumiu o poder de rei de Portugal, tenha condenado economicamente todos os que a ele se opuseram, incluindo a família Camões, facto que foi para esta extremamente ruinoso.

    Daí, um Camões que, enquanto ainda em Lisboa, se ia mantendo com a venda de alguns versos ou cartas que algum poderoso lhe ia encomendando para redigir.
    Daí, igualmente, todo o percurso económico penoso que trilhou até ao final dos seus dias, que ditou uma morte em tudo indigna para alguém em quem Portugal hoje se revê, como o seu símbolo.

Deixe um comentário

Por favor digite o seu comentário!
Por favor, digite o seu nome

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.