A Língua árabe, os moçárebes e a Língua portuguesa

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São inúmeros os domínios do valioso legado que recebemos da fascinante Civilização Árabe, da sua presença na Península Ibérica, seja na agricultura, na arquitectura (militar ou civil), como podemos admirar no magnífico Castelo de Silves, nas características açoteias (do ár. “as-suţayya”, o pequeno terraço, o mirante) de Olhão, na típica e graciosa configuração irregular dos cascos antigos de algumas das nossas cidades e vilas, com suas ruelas e becos, de que o icónico e rústico núcleo antigo de Messines ou o bairro lisboeta de Alfama (do ár. “al-hamma”, a fonte termal, o refúgio, a judiaria) são exemplos, na magnífica arte azulejar, de inspiração mudéjar, na botânica, na farmacologia, nos passos incipientes da química, outrora, alquimia, na própria genética, em especial, das nossas populações meridionais do Alentejo e Algarve e na profunda influência nas ricas gastronomias e doçarias daquelas duas províncias.

Destas, poderemos citar uma típica receita muçulmana, que era designada por “turda” e fala no “pão que mergulhavam num caldo aromático temperado com azeite”.

Que outra coisa poderá ser essa receita muçulmana senão a açorda (do ár. “at-turda”), aromtizada com coentros (ou poejo), feita com o inigualável pão de cabeça, muito provavelmente o melhor pão do mundo, que, embora chamado alentejano, foi, desde sempre, também produzido no Algarve?

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Também no campo das letras, mercê do elevado grau de perfeição que a língua árabe atingira, como língua de cultura, no século XI, emergiram, no território do futuro Portugal meridional, algumas figuras proeminentes, como o poeta e rei al-Mu’tamid e o poeta, teólogo e jurista Abu ai-Walid al-Baji, ambos de Beja, o filósofo, filólogo, gramático, lexicógrafo e jurista Ibn al-Sîd, de Silves e o poeta e vizir Ibn’Ammâr, de Estômbar.

Lamentavelmente, não fosse a sanha revanchista cristã, em que, para apagar a memória do “infiel”, muitas localidades portuguesas reconquistadas aos árabes foram arrasadas e tudo, literalmente, destruído, em fogueiras que ficavam a arder, durante dias, não fosse essa brutalidade goda, e seria bem mais expressiva a herança muçulmana que, hoje, poderíamos admirar.

É notória a semelhança e respectiva influência entre a poesia do al-Andalus e a lírica provençal trovadoresca, seja nas Cantigas de Amigo ou nas Cantigas de Amor, surgidas, entre os séculos XI e XIII, na região da Provença.

Esta influência, na poesia provençal, foi acentuada com o regresso de Franceses da Península Ibérica, onde tinham ido lutar contra os mouros.

Tal como na lírica arábigo-andaluza, a referência à mulher é feita, utilizando o masculino, característica que começou por se constatar na lírica trovadoresca provençal e, mais tarde, na galaico-portuguesa, como se pode constatar no verso/mia “senhor” branca e vermelha/da “Cantiga da Ribeirinha” de Paio Soares de Taveirós, poeta galego do século XII.

Observamos, em ambas as poesias, a mesma ambiência do sofrimento amoroso, obediência e submissão para com a pessoa amada.

No contexto das Cantigas de Amor, surge o “amor galante e cortês”, amor sofrido e impossível, em que, por vezes, os amantes requestavam damas da corte, que geralmente eram casadas com nobres.

Camões foi, também ele, vítima dessas paixões sem esperança, com os seus impulsivos amores palacianos pela bela princesa Dona Maria, irmã do rei D. João III, bem como pela linda Dona Violante de Andrade, senhora da mais alta nobreza.

Nestas Cantigas de Amor, o eu poético é masculino e o seu contexto é culto e cortesão.

Nas Cantigas de Amigo, o eu lírico é feminino, mas os seus autores são homens e o palco onde a paixão se desenvolve é a Natureza e não já a corte, envolvendo mulheres camponesas, numa ambiência de saudade e num tom de lamento, pela ausência do ser amado.

Do rei D. Dinis, excerto da sua Cantiga de Amigo “Ai Flores, Ai Flores Do Verde Pino”:

“Ai flores, ai flores do verde pino,
Se sabedes novas do meu amigo?
Ai Deus, e u é?“

Integrando a sociedade peninsular, sob o domínio árabe, havia duas etnias dominantes muçulmanas distintas: os Árabes propriamente ditos (originários da Península da Arábia) e os Berberes (com origem no Magrebe do Norte de África, vulgo, “os Mouros”).

Sempre houve, ao longo de todo o domínio muçulmano na Península, uma certa supremacia da etnia árabe sobre a berbere, a qual se sentia discriminada, facto que subjazeu a constantes e graves disputas entre as duas partes, que levou a profundas dissensões, que conduziram a verdadeiras guerras civis, de que se aproveitaram os reis cristãos, na Reconquista.

Havia igualmente a classe dos Judeus, cuja adaptação foi facilitada pelo facto de serem um povo semita, tal como os Árabes, o que propiciava uma boa osmose entre as duas culturas.

Dois outros grupos originários da antiga sociedade cristã integravam a sociedade muçulmana.

Os “Muladis” (do ár. muwallad, “mestiço”), cristãos que abandonaram o Cristianismo e se converteram à religião muçulmana.

Os “Moçárabes” (do ár. musta ‘ rabi, “arabizado”), cristãos ibéricos, que adoptaram a língua e costumes árabes, mas nunca se converteram ao Islão.

Finalmente, fazendo parte do fundo da escala social da sociedade muçulmana, havia os escravos e eunucos, sendo que estes eram os únicos, além, obviamente, do senhor, que tinham acesso ao “harém” (do ár. harâm, adjectivo substantivado com o significado de “sagrado”, “inviolável”).

Convirá não confundir “Muladi” com “Mudéjar” (do ár. mudajjanî, “submetido”, “domesticado”), muçulmano que, embora conservando a sua religião, ficou a viver na Península Ibérica, entre os cristãos, após a Reconquista.

É sobre os Moçárabes que irei fazer incidir a minha análise, que terá, necessariamente, de ser reduzida.
Fazendo parte dos Moçárabes, havia toda a antiga sociedade cristã, de antes da invasão, desde artesãos e camponeses a bispos, passando pela nobreza visigoda, os quais, mediante o pagamento da “Jízia” (do ár. jizya, tributo) e do “caraje” (do ár. haraj, “produto”), imposto pago em espécie sobre a propriedade imobiliária, mantinham o acesso a todas as suas próprias instituições, como celebrar o culto religioso nas igrejas, ser julgados, segundo o código de leis visigóticas, condensadas no “Liber Iudiciorum” e por juízes seus.

Porém, não obstante isso, as condições de subalternidade em que viviam sujeitavam-nos a vexações contínuas, situação que se agravou com a chegada ao poder dos berberes Almorávidas, um movimento conservador inspirado na escola de jurisprudência sunita.

O mesmo haveria de suceder, mais tarde, quando os berberes Almóadas impuseram o seu fundamentalismo religioso radical.

Os Moçárabes sempre foram apenas tolerados e malquistos, nos tempos da dominação muçulmana, por serem cristãos, como também o haveriam de ser, após a Reconquista, por serem vistos como cristãos adulterados pelos valores e costumes árabes.

Era notória a superioridade cultural dos Muçulmanos, face aos Cristãos, o que, adicionado ao facto de aqueles não terem interesse em aprender a língua do povo ocupado, obrigou a que os Cristãos aprendessem o Árabe.

Após a tomada definitiva do território aos muçulmanos e respectivo repovoamento, com o regresso das hostes cristãs, ocorreu o inevitável contágio linguístico de um sem número de substantivos da língua árabe, que os cristãos recém-chegados receberam do romanço lexical dos seus irmãos de fé, os Moçárabes, cujo legado enriqueceu, sobremaneira, a língua portuguesa, muito do qual utilizamos actualmente.

Porém, muitos dos vocábulos que integraram o nosso idioma são, hoje, arcaísmos caídos em desuso e já não utilizados na linguagem oral.

Dou, como exemplos, alguns – apenas alguns, num universo muito vasto – desses termos árabes que tiveram já existência plena, na boca do povo português:

acéquia (o canal de rega, represa, rego de água, vala por onde corre a água. Deriva do verbo árabe “saqâ”, irrigar, regar a terra);
alabão (o leite, termo de pastores, apenas usado, hoje, no Alentejo, significando ovelhas que dão muito leite, daí a designação de gado alabão. Tem, como antónimo, “alfeiro” – ver);
alcoveto (o mensageiro, o portador, sendo que deste substantivo resultou o conhecido termo “alcoviteira”, Lianor Vaz, da “Farsa de Inês Pereira”, alguém que facilitava os encontros amorosos, peça de teatro de Gil Vicente);
alfeiro (gado estéril, com o cio, rebanho de ovelhas reprodutoras, qualidade do que tem pouco valor, gado jovem, seja vacum, cavalar, caprino, lanígero ou porcino. Tem, como antónimo, “alabão” – ver);
algebista (o endireita, pessoa que possui a arte de consertar ossos deslocados ou quebrados. Note-se a relação com “álgebra”, termo que significava, em Árabe, “a redução”, algo que, com efeito, se verifica, quer numa equação matemática, que, depois de resolvida, fica “reduzida” ao simples valor da incógnita, quer, em medicina, na “redução” de ossos quebrados ou deslocados, cujas partes partidas ou deslocadas são puxadas, de modo que fiquem no enfiamento uma da outra. Deriva do verbo ár. “jabbara”, consertar, soldar, reparar ossos quebrados ou deslocados);
almanjarra (a trave, barrote a que se atrelam os animais para fazer girar a nora);
almenara (a torre, o farol, fogueira que se acendia no cimo das montanhas para aviso);
almexia (sinal que o nosso rei D. Afonso IV mandou que os Mouros trouxessem nas vestes, quando não vestiam a sua própria roupa, para se distinguirem dos cristãos. Deriva do verbo ár. “xaha”, assinalar, marcar);
almoeda (a proclamação, o pregão, é a “hasta pública” dos Romanos);
almotacé (o escrivão que contabilizava e contava, o fiel de mercado, inspector dos pesos e medidas das mercadorias, cujo preço controlava);
almoxarife (inspector encarregado da cobrança das rendas da corte, tesoureiro real);
alvanel (o pedreiro, donde resultou o termo português “alvenaria”, arte de pedreiro, tipo de construção com pedras, tijolos ou outros materiais ligados por cimento ou argamassa usados para fazer paredes ou muros);
atafona (o moinho para moer grãos, movido por animais ou manualmente. Deriva do verbo ár. “tâhana”, moer. No século XV, havia em Lisboa, a funcionar, cerca de 400 atafonas, movidas por bois e mulas, moendo apenas trigo);
catual (através do Hindi “katwal”, intendente, funcionário público, que, aquando da chegada de Vasco da Gama à Índia, se encarregava da ligação com os estrangeiros. O “príncipe dos poetas” refere-o, em “Os Lusíadas”, no Canto VII, estrofe 44);
chamelote (tecido de lã, pano de lã de ovelha e seda, que, primitivamente, era de tecido grosseiro de pelo de camelo. Quem não se recorda do vilancete “Descalça vai para a fonte”, que o nosso Poeta maior dedica a Lianor, em que refere o seu “Sainho de chamelote”, de que aqui deixo o terceto e a primeira redondilha?);

“Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa e não segura.

Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura;
Vai fermosa e não segura.”

Enxaca (a metade, cada uma das duas partes do alforge, que se colocava sobre as muares para transporte de géneros. Compare-se com “enxaqueca”, do ár. “ax-xaqîqa”, “a metade” de algo que seja duplo, dor de cabeça intensa, que, normalmente, se localiza apenas numa das duas partes da cabeça);
récua ou récova (fila de viajantes com animais de carga, como é usual ver-se no deserto do Norte de África, caravana de homens a cavalo ou com camelos. Daqui se formou o termo “recoveiro”, como sinónimo de “almocreve”. Deriva do verbo ár. “rakbah”, montar a cavalo, fornecer o “caraje” (do ár. haraj, “produto”), imposto pago em espécie sobre a propriedade imobiliária bestas para montar);

(foto extraída do “Diário da Nazaré”)

“Chove nela graça tanta, que dá graça à fermosura”

zagal (pastor, ajudante do maioral dos pastores, rapazito de treze ou catorze anos, que, por vezes, nem soldada ganha, que auxiliava o maioral, na guarda do gado e servia apenas pelo comer. “Zagal” é termo erudito, sinónimo de pastor, nalguns escritores portugueses, como no poeta barroco Francisco Rodrigues Lobo).

(foto obtida do “blog” “Sítio da Educação”)

Zagal alentejano

Vários destes termos ainda os ouvia, com frequência, na minha infância, na boca dos mais velhos, pessoas geralmente analfabetas, em quem ainda vivia a memória oral de muitos séculos atrás, reminiscência de tempos antigos e de vocábulos, entretanto, esquecidos e enterrados na poeira dos anos, que foram relegados, como descartáveis, para os livros, onde descansam do seu labor milenar.

NOTA FINAL: Trabalho efectuado com recurso parcial a pesquisas no universo da “net”

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