As coisas que se devem dizer – 1

A morte de Nuno Júdice é um golpe terrível na literatura portuguesa e na literatura europeia, sendo ele, como era, a mais destacada voz poética portuguesa contemporânea. Homenageá-lo agora que fisicamente se nos desaparece é um acto de imensa justiça e de não menos imensa gratidão. Acto que é acima de tudo um dever. Não tendo aqui outras palavras que mais sinceramente pudesse nesta hora alinhar, deixo-vos o texto que redigi em 2016, em vida do poeta, onde refiro o que foi para nós, naqueloutro tempo, o surgimento do primeiro livro deste enorme escritor português do Algarve, a quem tanto a cultura universal contemporânea fica a dever.

A NOÇÃO DO POEMA de Nuno Júdice

Texto de 2016, publicado no livro Oito Livros de Oito Poetas.

Quando, passados 45 anos sobre a edição de um livro, o leitor volta a ele (como voltara já passados 2 ou 5 anos, ou 10, ou 25, ou 30, ou 40) e continua a sentir o peso perdurável de cada palavra ali expressa; e quando independentemente das circunstâncias temporais serem distintas, de haver mudado o mundo e nele os conceitos e práticas na literatura, e de haver volteado a imparável roda das gerações, quando apesar disso o livro nos dá e dá e dá a descarga e o assombro que se repete desde a primeira leitura, isso diz-nos do livro que se sobrepôs ao tempo, que viveu e vive plenamente acima das circunstâncias da sua época de criação e que atingiu, para sempre, a sua ininflamável imortalidade.

Falo-vos de A Noção do Poema, editado pela primeira vez em 1972, livro de estreia de Nuno Júdice, seguramente o maior poeta português vivo; e, na poesia portuguesa actual, o poeta que é a maior referência para a minha escrita (não creio que deva falar em nome de outros, mas não andaria longe da verdade se dissesse a “escrita da minha geração”, onde digo da “minha escrita”). Na verdade, encontro-o ainda hoje e sempre não só no cume dos enormes referentes de quem é tributária a poesia que continuo a fazer, mas essencialmente na origem do movimento de pensamento, de alma e de escrita literária que mudou completamente a maneira de escrever a partir dos anos 70 em Portugal.

Permitam-me uma pequena viagem de regresso ao ano de 1972. Vivia-se então em Portugal o cinzento e obscuro clima do protofascismo nacional, nunca declarado mas vigente, a querer dar ares de primaveril e com uns ligeiríssimos e insinceros toques vagamente liberais. Cinzentos, obscuros e tristes, esses tempos. Era uma ditadura em final de época, a quem toda a gente descortinava já o ar de cadáver adiado, moribunda e revelha, mas que insistia em querer perpetuar-se, sem aperceber-se já do seu estertor, que em tudo se pressentia.
Aquilo que nós, jovens de então, – pensem nas vossas fisionomias, nas vossas ideias, na vossa maneira de estar em 1972, e eu estou lá também, e a pensar como vós –sentíamos, e creio que em especial os que já por então experimentavam o apelo da poesia, era um visível cansaço em relação ao que em poesia se vinha fazendo. O Casimiro de Brito e o Gastão Cruz tinham trazido relevante frescura à expressão poética nacional, com os seus cadernos da Poesia 61; o Manuel Alegre tinha editado Praça da Canção (logo feita desaparecer pela PIDE) onde recuperava o lirismo português numa belíssima poesia de combate; mas não obstante alguns nomes sonantes de poetas de então (Jorge de Sena, Égito Gonçalves, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Herberto Helder, António Ramos Rosa, Natália Correia, David Mourão-Ferreira, Daniel Filipe, ou Alexandre O’Neil) nós, jovens leitores, sentíamos que havia ainda em quase tudo o resto uma certa ganga panfletária, um excessivo pendor militante ou um discursivismo poético intranscendente, que vinha necessariamente da luta anti repressiva e do neo-realismo, ou dos resquícios das experiências surrealistas. Faltava-nos uma poética nova, libertadora em todos os sentidos da palavra, algo que se afirmasse em nós como um novo caminho para as palavras, a poesia, a sua forma e a sua capacidade de comover-nos. Devemos a Nuno Júdice e ao seu A Noção do Poema esse momento, esse livro despoletador, essa sensação, que ainda hoje tenho, de que uma coisa nova entrara nas nossas vidas.

Quando comecei a ler este livro de poemas, nesses anos de 1972 e 1973, a primeira emoção foi de choque. Choque, porque o livro começa com algo que nos abala: um manifesto. Um propósito de escrita e de vida. Na altura não sabíamos definir sequer o que isso era. Hoje podemos chamar-lhe diálogo intertextual, pensamento crítico sobre a própria poesia, metapoesia, o que quisermos; mas por então o livro era algo que não percebíamos ainda totalmente em toda a sua amplitude; mas pelo qual sentíamos a presença fresca e altiva de uma linguagem poética absolutamente nova, absolutamente encantadora para quantos estavam à espera que alguma coisa viesse e nos tocasse, como um dedo de deus na Capela Sistina das nossas almas juvenis. Na verdade, éramos tão novos que não percebíamos muito bem o que ali estava; mas percebíamos que estava ali uma coisa nova e diferente. Víamos uma poesia que transgredia as regras da poesia. Era uma voz nova, genuína, vibrante, de ruptura com as formas estabelecidas e com todas as experiências anteriores.

Desde logo, uma poesia que se pensava e anunciava o seu mesmo pensamento sobre o modo e a forma da arte poética. Uma poesia que se narrava a si própria e ao seu autor, nas suas circunstâncias. Uma poesia que se cultuava a si própria, e que se afirmava com autoridade e plenitude, em pleno vigor. E numa técnica da narratividade com a linguagem poética a prolongar-se e elevar-se quase aos limites da prosa, aos limites do hausto respiratório, mesmo quando apenas a dizíamos no silêncio íntimo das nossas cabeças. E não era prosa. Era poesia que mesmo antes de passar-se aos limites da prosa, voltava outra vez à poesia. O ritmo fugia das regras da métrica, sustentava-se nos processos da respiração, como no Teatro ou na Ópera. Aliás, muitos dos poemas figuravam um palco enorme, onde havia paisagens, histórias, movimento, e onde o autor representava e se representava, não porém um personagem, mas a si mesmo, e à sua autenticidade.

Ler qualquer daqueles poemas, ou lê-los todos, era um assombro, para lá do choque inicial; um desvendar ainda parcial de enigmas que saíam de nós mesmos e se espalhavam pelos nossos cadernos de apontamentos, pelos esboços de poemas que já fazíamos, pelas nossas conversas, pelas demais leituras. Então, com Júdice, “aprendi que há palavras que dão uma cor imprecisa à frase”. Que se podia escrever “contra a exigência ética dos cultores da realidade”, e assim “romper o silêncio barroco da escrita”.

Esses poemas diziam-nos de alguma coisa que estava para acontecer – ou já a acontecer – , e davam-nos essa energia de ir ao limite e regressar de uma forma perfeitamente hábil ao registo anterior, davam-nos um ritmo ignorado; e à vez uma imagem completamente diferente daquilo que a literatura nos dizia de nós próprios e do país. O país era, e continua a ser, bafejado com um sol impressionista, um sul que tinha sempre excelsa luminosidade, uma luz fabulosa; e era assim que os poetas o cantavam. E a propaganda oficial o mostrava. Mas nós, apesar disso, sentíamo-nos tristes com a guerra à nossa espera, com a injustiça, com o espectro largo da pobreza. Sentíamo-nos tristes com os que se exilavam, tristes porque alguns dos jovens de Portugal, e alguns dos nossos conhecidos, já tinham morrido nessa guerra que mal lhes dizia respeito; sentíamo-nos tristes porque sabíamos que quando terminássemos a universidade ou o liceu iriamos ser levados para esse conflito que não entendíamos e com o qual nunca podíamos concordar. Sentíamo-nos tristes porque as raparigas tinham de estar nas escolas em lugares separados dos rapazes; porque havia ainda um fascismo clerical nas mentalidades, um bafiento odor a medo. E de repente aparece uma pessoa, um jovem, neste livro; e nós olhávamos para a fotografia da capa – uma belíssima fotografia – , e era um jovem como nós, naquela altura; e essa pessoa e esse livro estavam finalmente a pôr o mundo de outra maneira. E traziam-nos um sopro de novidade, de genialidade, um gasómetro louco, e conjuntamente com a enumeração dos lugares uma experiência do mito, a constatação do absoluto!, segundo as palavras do poeta. E sempre esse arauto, essa proclamação, esse manifesto do que e como devia ser a poesia em cada poema que se escrevia. E com efeito cada poema é um tratado sobre o que é a poesia de Nuno Júdice, o que ele quis representar e representar-se em cada poema, e também o que não queria. «Sou um impuro e ateu. Perdi o meu génio na luta entre as palavras e o sujeito…» Estava ali, para nós, incipiente mas presente, a reflexão que nos havia de conduzir às leituras teóricas sobre Linguística, Teoria da Literatura ou Crítica Literária, mas sem esquecer a essência mesma da poesia que não se contem, jamais se contem, em regras e teorias. Estavam ali a descoberta e o entendimento da literatura e da poesia como objecto de pensamento sobre a linguagem, das palavras como coisas vivas, a reflexão da poesia sobre si própria. “O que é a poesia senão o conhecimento desmedido da imagem, a transfiguração plena da regra em horizonte, da plástica em consciência?

Olho agora mesmo para o livro, enquanto o treleio nesta presente leitura. E confirmo a profunda sensação daqueles anos: estava ali a genuína mudança, a completa e necessária novidade a chocar o paradigma da rotina e do medo à mudança, a alterar a forma de sentir a poesia, a recusar a forma falsa como a arte representava o país. Esta poesia trazia-nos finalmente paisagens que eram nossas, mas que nós recusávamos que fossem nossas. Sentíamos aqui ambientes que podiam ser de Edgar Allan Poe, ou de Mallarmé, uma poesia que se chegava muito à beat generation que por então vínhamos descobrindo através dos Cadernos de Poesia da D. Quixote; mas que não se confundia nem esgotava nela, indo aliás muito para além. Era assim que a víamos, nesses idos de 1972.

Mas, verdadeiramente, só percebi o que me tinha acontecido, o que representava para mim (e creio que para todos que o leram) este livro, quando li o poema de Keats «On first looking into Chapman’s Homer». Houve uma fase curiosa na minha vida de leitor. O meu pai tinha uma colecção de livrinhos de poesia chamada Românticos Ingleses, e eu andei a lê-los exaustivamente – tive essa fase -: Byron, Keats, Shelley. E eis que me deparo com esse poema de Keats, não só fabuloso, como definidor do que me sucedera no dia em que vi pela primeira vez o livro de Nuno Júdice e o comecei a ler. O poema que me esclareceu é exactamente este:

“Ao compulsar, pela primeira vez, o Homero de Chapman
Já por impérios de ouro eu muito viajara,
Diversos reinos vira – e quanto belo Estado!
Já muitas ilhas, a ocidente, eu circundara,
As quais, em feudo, Apolo aos bardos tinha doado.
Eu já sabia que em país mais dilatado
Homero, o que pensava fundo, governara:
Porém seu límpido ar não tinha ainda aspirado
Até que ouvi a voz de Chapman (podem pôr A Noção de Poema), brava e clara.
Como o que espreita o céu e colhe na visão
Algum novo planeta, assim fiquei então;
Ou como quando – com olhar de águia – Cortez nem bem
O Pacífico havia divisado além –
Seus homens a se entreolhar, supondo com aflição –
E ficou sem falar, num pico em Darien.

Chapman é um literato inglês da época de Shakespeare, e Keats faz este exercício no soneto sobre a própria poesia, sobre a descoberta da poesia. O que ele diz é que ouviu falar muitas vezes do Homero, leu o Homero, mas jamais sentira essa sensação como quando ali, então, lera o Homero traduzido por Chapman. Isto é também o que ainda hoje sinto quando pego em A Noção do Poema. Uma rara sensação de descoberta. O estremecimento peregrino e inicial de quem pela primeira vez pisa uma ilha remota e ignorada dos portulanos. Hoje ainda, passados todos estes anos, ler A Noção do Poema é alcançar essa sensação do observador dos céus que de repente vê que um novo planeta entrou no seu campo de visão.

Por isso afirmo: de 1980 em diante, algum poeta que diga que não é tributário da poesia de Júdice, que não sofre directa ou indirecta influência deste autor é, como diria Haroldo Campos sobre Pound, mais digno da nossa pena do que da nossa indignação.

Olhão, 2016

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